Sou do tipo de pessoa que quando cisma com uma música, escuta repetidamente por horas, dias seguidos. Aconteceu comigo isso recentemente com a versão da música The Great Pretender cantada pelo Freddie Mercury. A música é bem antiga, dos anos cinquenta, originalmente gravada pelo The Platters. A versão do Freddie Mercury tocou fundo na minha alma. Claro, não é para menos. Tudo o que ele cantava virava ouro. Freddie tinha uma capacidade incrível de dar a entonação e a emoção exatas a cada uma das palavras da música.
Essa música que é tida como romântica ganhou um significado novo na voz dele. Para mim, mais parecia que ele não estava apenas queixando-se de uma dor de amor. Ele estava dizendo ao mundo inteiro: eu sou um fingidor, vivo nessa hipocrisia que é a sociedade, sorrindo quando estou triste, fingindo alegria, mas corroído por dentro.
“Ah sim, eu sou um grande fingidor, fingindo que eu estou bem. Minha carência é tanta que eu finjo demais, estou sozinho, mas ninguém percebe”, diz a música em uma tradução livre.
Pensando muito sobre essa letra, lembrei-me de uma crônica de Clarice Lispector, do livro A Descoberta do Mundo. A crônica, chamada Persona, discorre sobre a questão das máscaras que usamos no mundo. Mas Clarice deixa claro a necessidade das máscaras.
“Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.”
A máscara é necessária, é a proteção, o escudo que usamos. Não necessariamente a máscara é hipócrita e falsa, no mau sentido. Às vezes ela é; muitas, talvez. Mas muitas vezes, ela é como uma roupa que nos protege do mundo, das coisas que nos agridem, das pessoas, de nós mesmos. Precisamos usar a máscara, para conter o vulcão que somos nós por dentro. A máscara nos torna pessoas, como diz Clarice, porque contém esse tsunami que temos dentro de nós. É como a pele que protege a carne viva.
Precisamos da máscara durante a maior parte de nossas vidas. São poucas, muito poucas, as pessoas para as quais permitimos mostrar um pouco do que tem abaixo da máscara. São poucas as pessoas para quem nos mostramos nus de verdade.
E tem que ser assim. Já imaginou se ao encontrarmos com conhecidos abríssemos todas as nossas frestas, nos expuséssemos ao máximo? Não viveríamos nem dois dias para contar a história.
Por exemplo, um conhecido vem e pergunta como você está. Suponha que você está com o coração dilacerado, porque desenvolveu sentimentos por uma amiga que, por obra do acaso, já está saindo com outro. Você percebe que chegou atrasado. Você, então, responde ao conhecido: “nossa, não estou muito bem… para falar a verdade, não consigo tirar uma pessoa da minha cabeça, mesmo sabendo que ela não está disponível para mim! É doído, triste. Estou vivendo a vida como se nada estivesse acontecendo, mas na verdade, está doendo”.
O sujeito ia olhar para você e não saberia o que dizer. Provavelmente ia ficar assustado, como se tivesse lhe visto nu – e, bem, ele viu. A verdade é que para 99% das pessoas, nós dizemos que estamos bem. Para uma ou duas contamos que estamos gostando de alguém, mas nos apressamos em dizer que está tudo bem, porque a fila anda e o mundo está cheio de gente legal. Para uma, talvez, a gente chora e conta que está doendo – talvez, na análise. Essas, somente essas, conseguem ver através da máscara.
Com essas, há momentos em que a extrema solidão que vivemos, cada um de nós, consegue encontrar um ponto de conexão real. Quando dois mascarados deixam-se ver nus, há conexão, a solidão é aplacada.
“Sim, sou um grande fingidor, rindo e alegre como um palhaço. Eu pareço ser o que não sou, veja você! Eu estou usando meu coração como uma coroa”, diz a canção.
Isso também me lembrou o livro O homem que sabe, de Viviane Mosé, especificamente o capítulo referente ao erotismo e a transgressão, onde ela cita o livro O Erotismo, de Georges Bataille.
“O homem é um ser que teme a si mesmo, porque, de sua consciência, se percebe como parte deste mar excessivo que é a vida. (…) A condição para a constituição de um si mesmo é a adoção de limites”.
O limite aqui são as máscaras, o contorno que colocamos ao redor da usina hidrelétrica que somos nós por dentro.
“Nossa ferida trágica, nossa dor constitutiva é que somos seres sozinhos: não estamos em continuidade com nossos pais, nem com nossos filhos. Entre um ser e outro, há um abismo, na impossibilidade de romper este abismo, buscamos senti-lo de perto, a partir da tentativa de retomar esta continuidade perdida”.
“O amor nos oferece a substituição do isolamento e da solidão, por meio de uma maravilhosa continuidade afetiva, moral entre dois seres”, diz outro trecho do livro de Mosé.
Acho até que, por isso, há tanto medo de relacionamentos profundos e verdadeiros. É necessário uma baita coragem para ficar nu – de alma, no caso -, na frente de outra pessoa. A fragilidade é muita. A sensibilidade é extrema. Tudo é intenso, tudo é prazer e dor. É preciso muita confiança para se expor assim. Quem confia assim hoje em dia? A verdade é que sentimo-nos seguros atrás de nossas máscaras.
“O erotismo, diz Bataille, é uma experiência de morte, porque é a experimentação da ausência de limites. Uma morte vislumbrada, experimentada como potência e não como ato, mas que nos faz reencontrar uma unidade perdida com a vida”, diz Mosé.
E parece que Clarice pensava algo na mesma linha. “Se bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar. É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente – ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra ouvida – de repente a máscara de guerra de vida cresta-se toda no rosto, como lama seca, e os pedaços irregulares caem como uma ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele chora em silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este ser morrerá. A menos que renasça até que dele se possa dizer ‘esta é uma pessoa’”.
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