Disse o poeta inglês John Milton em meados do século XVII: “Acima de todas as liberdades, dê-me a de saber, de me expressar, de debater com autonomia, de acordo com minha consciência”. Certamente a máxima miltoniana dita em um contexto de turbulência revolucionária pela qual passava o Reino Unido serve ainda hoje como um lema para todos aqueles que na atualidade defendem a liberdade de expressão, princípio fundamental de manutenção das modernas democracias. Sem dúvidas, a construção de argumentos seja na esfera privada, seja na esfera pública não só permite que no âmbito da sociedade floresçam os mais diversos fluxos de opiniões, ideias e ideais como também dá margem para a construção de argumentos universais que facilitem o entendimento racionalmente motivado* entre as mais diferentes partes que convivem no espaço das commonweathls.

Para além dos benefícios da concessão da prerrogativa à liberdade de expressão para todos os cidadãos situados nas sociedades democráticas ocidentais ou não, não se pode esquecer que essa se constitui como um direito humano previsto pela Carta das Nações Unidas instituída em 1948. Logicamente, há problemas para que esse direito seja efetivado no plano prático, em razão das contradições normativas frente à centralidade do Estado-Nação no cenário internacional, bem como para garantia interna dos direitos. O caso dos refugiados é exemplar. A permanência da existência de inúmeras ditaduras, principalmente no continente africano, também. Discutir o paradigma da livre expressão das consciências permanece um dilema, ainda mais levando-se em conta o fato de que ela continua sendo restrita à uma parte privilegiada da humanidade que reside em nações que gozam de altos índices, medidos em rankings, de liberdade de imprensa e de organização política.

Apesar de ter passado por um processo de redemocratização nos anos de 1980 e que se estendeu até o golpe parlamentar de 2016 em um intervalo de expansão da cidadania que durou 30 anos, o Brasil está longe de deter níveis satisfatórios de democratização nesses rankings. No de liberdade de imprensa, por exemplo, estamos em 104ª lugar. A discussão chave desse texto, então, torna-se mais complexa ainda. Como falar em limites da liberdade de expressão em um contexto onde as restrições ao livre exercício do pensamento já são significativas? A questão é espinhosa e pode ser lida a partir de uma gama de pontos de vista. Vou tentar resumi-las em duas grandes concepções: a visão libertária e a visão progressista que basicamente animam esse debate. A nomeação dessas categorias são de minha autoria e servem inclusive para pensar um acontecimento recente em São Paulo: um abaixo assinado exitoso que reivindicava a proibição da presença do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) no Clube Hebraica de SP para que naquele recinto se realizasse uma palestra.

Com base na concepção libertária, a liberdade de expressão é irrestrita, mesmo quando cercada de discursos de ódio a um grupo de indivíduos. Nessa lógica, uma brecha que restrinja a livre expressão dos pensamentos pode desencadear em outras restrições, numa sequência de etapas sucessivas e ilimitadas que por fim acabariam moldando os argumentos públicos a uma maneira “politicamente correta” de emitir as elaborações da consciência. Essa deformação não só infatilizaria o debate, como faria com que algumas posições fossem legitimadas e outras, notadamente as de teor conservador, fossem postas de lado ou quicá criminalizadas. Para tal visão, não há como determinar algum limite para a livre expressão tendo em vista que essa fronteira sempre seria estabelecida com base em uma concepção ética. O mais justo seria que ao invés de criar demarcações notadamente enviesadas e antidemocráticas, todos os argumentos (moderados ou radicais) tenham espaço no campo de conflito que é a arena pública. Dessa forma, a deslegitimação se daria pelo embate racional e não pelo proibicionismo prévio.

A concepção progressista advoga, por sua vez, que a liberdade de expressão deva ser exercida até um determinado ponto. Que ponto seria esse? O dos discursos discriminatórios, “ofensivos” ou de ódio. Os adeptos dessa visão não concebem uma arena pública na qual haja espaço para livre ofensa ou para mobilização política de ressentimentos difusos contra determinadas categorias sociais. Automaticamente, estariam excluidas posições políticas mais extremadas como é o caso do nazifascismo. A determinação dos limites extemporâneos não se dá arbitrariamente, mas sim a partir de um entendimento social do que seja considerado válido ou não no debate público. Somente através da aproximação com um modelo consensual, é possível fazer desabar o argumento da “seletividade” levantado pelos libertários. Caberá aos cidadãos, pela livre construção do pensamento ou por influências racionalizantes exógenas, responder a perguntas como: Cabe ao racismo ser um instrumento da luta política? ou então: É razoável que um candidato incremente a sua plataforma política com a propagação de ofensas às mulheres?

As duas visões têm competido e incrementado a polarização atravessada pelo país desde junho de 2013. Movimentos feministas, LGBT, racial, ecologistas, etc., tentam influenciar, principalmente dentro dos espaços acadêmicos, a adesão a uma visão mais limitada da liberdade de expressão. Em decorrência disso, têm sido acusados de tentar impor uma “ditadura do politicamente correto”, institucionalizar uma “vigilância da linguagem” e impor uma controversa visão “pós-moderna” (o termo que se refere a um momento histórico específico tornou-se um xingamento mobilizado por militantes de direita e de esquerda). O ato de limitar não é necessariamente ruim, ainda mais tendo em conta o poder que as palavras possuem no exercício cotidiano da opressão simbólica e das agressões e constrangimentos morais. A criminalização do racismo no Brasil é um exemplo de que para fazer a civilização evoluir às vezes é preciso frear impulsos linguísticos que machucam e chegam mesmo a destruir vidas. Advogo e sempre advogarei pelo respeito ao outro como a regra número um das discussões travadas na esferas pública. Nada mais justo então do que o cerceamento da voz dos que fazem da discriminação o motor de suas agendas*.

*Algumas categorias aqui utilizadas remetem ora de maneira subliminar ora de forma explícita a construções teóricas habermasianas. Quando se fala de entendimento, por exemplo, opta-se por substituir a categoria “consenso” que tem sido notadamente reificada nos estudos acadêmicos, mas que não passa de uma tradução equivocada do alemão feita no Brasil (Informação obtida durante palestra da professora de Ciência Política da UnB Marisa Von Bulow durante o Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política em 2016)

*Apesar da negativa do Clube Hebraica de SP, Bolsonaro obteve espaço para palestrar no Clube Hebraica do RJ. A relativa aceitação de suas ideias na comunidade judaica em muito se deve ao fato da sua adesão irrestrita à ideologia sionista, típica da extrema-direita.

Referências bibliográficas

Habermas, Jurgen, 1929 – Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I/Jurger Habermas; tradução: Flávio Beno Siebeneichler. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.







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