Todos que leram o livro “Vidas Secas” de Graciliano Ramos devem ter percebido a grande dificuldade do personagem principal em pensar a si mesmo como sujeito. O livro conta a história de Fabiano e de sua família em uma Odisseia pelo sertão do nordeste, no período da seca. Ele e sua esposa, Sinhá Vitória, seus dois filhos e a cadela Baleia, viajavam embaixo de um sol escaldante, sempre buscando sobreviverem. A vida de Fabiano era de um retirante, onde não há relações duradouras, não há uma narrativa continua e linear. Sua vida era tão árida como o meio ambiente a sua volta. A seca não era apenas a condição de seu meio, mas era também de seu mundo interior. A carência e escassez do sertão estavam profundamente enraizadas em sua alma. Ele era como um daqueles mandacarus resistente à seca. Mesmo naquele mundo árido, a opressão e as relações de poder e de classe estavam presentes.
Fabiano sempre era explorado e enganado, sentia dificuldade em pensar sobre essa exploração. Era desprovido de raciocínio e de reflexão, desumanizado pela seca, pela miséria e pelas relações de poder dos proprietários da região. Como consequência disso, sua linguagem era pobre, sua visão de mundo era limitada e fragmentada. Naquele ambiente ele sentia-se bem apenas diante dos animais e confundia-se com eles. Em uma passagem do livro isso é mostrado de forma contundente: “vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes, utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admira as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.” (Vidas Secas – Graciliano Ramos)
Fabiano não é apenas um personagem de Vidas Secas, ele também personifica a imagem de muitos indivíduos nos grandes centros urbanos. Sua pobreza vocabular, a grande dificuldade em raciocinar, a incapacidade de compreender as forças que o dominam e determinam sua existência são características de muitos brasileiros anônimos. Fabiano era desprovido de “linguagem”, por isso não conseguia pensar com autonomia, não conseguia perceber as forças que o subjugavam, que o condenavam a uma vida de miséria. Em uma passagem, ele percebe que o patrão lhe enganara em seu salário. Sente-se injustiçado e impotente, pois não sabe fazer contas. Nesse sentido relaciona a linguagem a poderes mágicos, que só os homens “sabidos” podem ter. A pobreza vocabular de Fabiano impedia-o de compreender sua exploração.
A linguagem é essencial na vida dos seres humanos. O homem sem linguagem torna-se um primitivo, torna-se um animal. Fabiano era um um animal. Ser desprovido dos benefícios da linguagem é parte da miséria humana e ajuda a perpetuá-la. A miséria nasce da “ignorância”. O olho vê apenas o que está em seu campo visual, mas é a linguagem que abre as portas da percepção. Quanto maior minha linguagem, maior minha visão de mundo. A linguagem revela, mostra o efêmero, o indizível, o oculto, o indelével. Ela capta o universal no particular, nesse sentido é libertadora. O grande filósofo Wittgenstein já dizia que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Fabiano não tinha um mundo, vivia de forma inconsciente, não era capaz de refletir sobre suas circunstâncias. ó podemos representar e compreender o mundo através da linguagem. Não há pensamento sem linguagem. Aquilo que está fora de minha linguagem, está fora de meu mundo. “A linguagem é o espelho do mundo”.
Fabiano também ignorava o que realmente sentia, vivia de forma irrefletida, seu objetivo era apenas sobreviver ao flagelo da seca. Como ele, muitos brasileiros vivem de forma irrefletida, percebem o mundo como obstáculo à plena realização de sua individualidade, como obstáculos à expressão da sua subjetividade. Ser como Fabiano é ser incapaz de dar sentido e significado a sua experiência social, é ser incapaz de pensar o mundo de uma maneira crítica e consciente. Nossa existência e circunstâncias só podem ser compreendidas se tornamo-nos cônscios de nossa posição social na grande ordem do todo. Só podemos avaliar nossa experiência e nosso destino compreendendo as forças históricas e as relações de poder que nos determinam. Segundo Wright Mills, os homens “raramente têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história mundial, por isso os homens comuns não sabem, quase sempre, o que essa ligação significa para os tipos de ser em que se estão transformando e para o tipo de evolução histórica de que podem participar. Não dispõem da qualidade intelectual básica para sentir o jogo que se processa entre os homens e a sociedade, a biografia e a história, o eu e o mundo. Não podem enfrentar suas preocupações pessoais de modo a controlar sempre as transformações estruturais que habitualmente estão atrás deles” (MILLS, 1969, p. 10).
A história de Fabiano mostra-nos que nossa experiência e nosso destino não são conduzidos pelo acaso, que nossos fracassos ou vitórias na vida dependem de forças que não temos controle. Que a vida particular de cada indivíduo está inextricavelmente ligado a seu meio e a sua sociedade. Que nossas ações não são independentes da ordem do todo. Que o nosso cotidiano e nossa vida são determinados por acontecimentos históricos diversos, mesmo que sejam distantes no tempo e no espaço. Fabiano vive de uma geração a outra numa determinada sociedade, em um certo estágio das forças produtivas, subjugado por um mundo de carência, escassez e opressão. Fabiano além de lutar com as forças da natureza, buscando sobreviver à seca, também era subjugado em um estágio primitivo das forças produtivas, pelo patrão, pelo dono da venda, pelo soldado amarelo, pelo fiscal, como partes daquele mundo onde as relações de exploração capitalista eram ainda coloniais..
BIBLIOGRAFIA
MILLS, Wright C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1938.
WITTGENTEIN, L. Tratado lógico-Filosófico. Lisboa: Fundação Calouste Gulberkian, 1995.
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