Na natureza selvagem, parafraseando o título de um dos mais belos filmes feitos nos últimos anos nos EUA, ou no “mundo da vida” repleto das singelezas humanas, a disputa acirrada por locais e status é fato componente daquilo que construímos e chamamos de “civilização”. Em um primeiro momento da história – cujo marco se encontra no próprio momento de estabelecimento da propriedade privada –, ela se dava na disputa por recursos naturais ou não essenciais para a sobrevivência e o reerguimento perante os demais de grupos distintos de pessoas que circulavam simultaneamente no mesmo espaço-tempo. Hoje, boa parte das desigualdades e dos desequilíbrios podem ser atribuídos à ausência de freios incorporada nas esferas de produção ou mesmo de liberação dos afetos que geram um quadro de “todos contra todos”, naturalizado e sutil.
A ideologia neoliberal não é apenas um constructo que afeta as estruturas econômicas e políticas. Ela é uma teorização que penetra fundo nas subjetividades. A dissolução dos lemas da “competência”, da “eficácia”, da “eficiência”, da “efetividade”, da “velocidade” e dos “resultados” ocorre no íntimo e faz florescer os mais variados comportamentos que fazem com que nossa existência deixe de se pautar pelo critério do “melhor aproveitamento” daquilo que é oferecido, primordial na conquista do infindável prazer, e passe a constituir se enquanto exercício do ser regrado pela necessidade da “produtividade”, que muitas vezes não passa pelo crivo da seguinte questão: aquilo que produzimos, cotidianamente, afinal serve a quem? Nem sempre ela é um reflexo daquilo que nós realmente queremos, mas do que melhor pode ser convertido em “status”.
Os esquadrinhamentos são processos de conformação que atravessamos desde a mais tenra socialização; que por vezes pode ser pueril. O mercado e seus liames, mais do que um sistema de “trocas voluntárias” (ironicamente utilizo a afirmação dos liberais), é fonte direta dos mais plenos engessamentos, corporificados pelo “agir mecânico” desprovido de qualquer racionalidade emancipatória. O “homem mercadoria” é aquele que perde parte da sua humanidade no mundo do trabalho, tendo em vista ser aquele elemento dispensável para a própria manutenção da “irracionalidade racional” dos modelos de economia, política e sociedade vigentes. Essa “cultura do aprisionamento” desemboca em efeitos de aparência apresentável como o da competitividade, suposto meio de aperfeiçoamento das capacidades humanas, frente ao perigo do “outro”, o competidor.
Quando buscamos por “competição” no dicionário encontramos as seguintes definições:
“1. concorrência a uma mesma pretensão por parte de duas ou mais pessoas ou grupos, com vistas a igualar ou esp. a superar o outro.Luta, conflito; oposição.reivindicação simultânea do mesmo poder, a mesma dignidade ou título etc.
2. eco interação intra ou interespecífica que ocorre quando duas ou mais espécies necessitam de um mesmo recurso ambiental limitado.”
As sociedades da informação também podem ser chamadas de sociedades de competição. A Revolução Industrial, em suas diferentes fases, fez evoluir, ao mais alto grau, padrões de disputa que antes ocupavam o posto de composant perpétuo das nossas tristes sociedades. A lógica ultra racional, que permeia o modo de produção, exige que os anseios de nivelação ou superação, correspondentes aos sentidos dispersos no léxico, não sejam só mais aqueles da linha de montagem como era na representação crítica de Chaplin nos seus “Tempos Modernos”. Beleza, voz, estilo, preparo, entre outros, são elementares no eterno confronto das posições pessoais que manifestam a “competitividade” que apreendeu nossos gestos mais primitivos em uma “roda viva” na qual o importante é superar outrem e não exponencializar nossas preferências guardadas.
É factível pensar em um tempo onde a competitividade se esvairia com todas as suas brutezas? Na quadra histórica em que habitamos, talvez não. Em uma sociedade regida por outra lógica, pós-capitalista, sim. A derrubada da estrutura é o ponto chave para a decadência dos discursos de maquinação pueris que enrijeceram o nosso “ego”, tão somente massageado pela conquista acirrada de postos cada vez mais diminutos, pela ocupação de espaços tão somente reservados ao privilegiados. A “competitividade” é tal qual a imagem da salsicha pendurada no cachorro. Por mais que caminhemos em direção às promessas frutíferas da faixa de chegada (e aqui a competição vira corrida ao além), sempre hão de haver os que nos deixem para trás. É uma ética doce ilusão, repleta de fetiches desumanizantes, que sustenta o sistema vilipendioso que nos massacra.
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