Platão chama “filosofia” – o amor à sabedoria – à própria busca, à própria atividade educativa, ligada a uma expressão escrita, à forma literária do diálogo.
E Platão olha reverente o passado, um mundo em que existiram os verdadeiros “sábios”. Por outro lado, a filosofia posterior, a nossa filosofia, é apenas uma continuação, um desenvolvimento da forma literária introduzida por Platão; contudo, esta surge como fenômeno da decadência, na medida em que “o amor à sabedoria” está mais abaixo da “sabedoria”.
O amor à sabedoria, para Platão, não significava de fato a aspiração a algo nunca atingido, mas sim uma tendência a recuperar aquilo que já fora realizado e vivido.
Portanto, não há um desenvolvimento contínuo, homogêneo, da sabedoria à filosofia. O que dá origem a esta última é uma reforma expressiva, é a intervenção de uma nova forma literária, um filtro através do qual condiciona-se o conhecimento de todo o precedente.
A tradição, em grande parte oral, da sabedoria, já obscura e escassa pela distância dos tempos, já evanescente e tênue para o próprio Platão, mostra-se, a nossos olhos, francamente falsificada pela inserção da literatura filosófica.
Por outro lado, é muito incerta a extensão temporal dessa época da sabedoria: nela está compreendida a chamada idade pré-socrática, ou seja, os séculos V e VI a.C., mas a origem mais distante nos escapa. É preciso recorrer à mais remota tradição da poesia e da religião grega, mas a interpretação dos dados não pode deixar de ser filosófica.
Deve-se configurar, mesmo que de modo hipotético, uma interpretação do tipo daquela proposta por Nietzsche para expor a origem da tragédia. Quando um grande fenômeno oferece uma documentação histórica suficiente apenas em sua parte final, só resta a tentativa de interpolar, no que se refere a sua totalidade, certas imagens e conceitos, escolhidos e entendidos como símbolos na tradição religiosa.
Nietzsche parte, como se sabe, das imagens de dois deuses gregos, Dionísio e Apolo, e, aprofundando estética e metafisicamente os conceitos de dionisíaco e apolíneo, esboça, em primeiro lugar, uma doutrina sobre o surgimento e a decadência da tragédia grega; depois uma interpretação geral da grecidade e até uma nova visão de mundo. Assim, igual perspectiva parece abrir-se quando se considera, em vez do nascimento da tragédia, a origem da sabedoria.
São ainda os mesmos deuses, Apolo e Dionísio, que se encontram no retroceder ao longo das sendas da sabedoria grega. Mas, nessa esfera, a caracterização de Nietzsche deve ser modificada; além disso, a prioridade deve ser concedida a Apolo, e não a Dionísio. De fato, se cabe atribuir a alguém o domínio sobre a sabedoria, é ao deus de Delfos.
Em Delfos se manifesta a vocação dos gregos para o conhecimento: sábio é quem lança a luz na obscuridade, desfaz os nós, manifesta o desconhecido, determina o incerto. Para essa civilização arcaica, o conhecimento do futuro do homem e do mundo pertence à sabedoria. Apolo simboliza esse olho penetrante, seu culto celebra a sabedoria.
Outros povos conheceram, exaltaram a arte divinatória, mas nenhum povo a elevou a símbolo decisivo, pelo qual, no mais alto grau, a potência exprime-se em conhecimento, como aconteceu entre os gregos. Adivinhar implica conhecer o futuro e manifestar, comunicar tal conhecimento. Isso ocorre através da palavra do deus, do oráculo.
Na palavra manifesta-se ao homem a sabedoria do deus, e a forma, a ordem, o nexo em que se apresentam as palavras revela que não se tratam de palavras humanas, e sim de palavras divinas. Daí o caráter exterior do oráculo: a ambiguidade, a obscuridade, as alusões de árdua decifração, a incerteza.
O deus, portanto, conhece o porvir, manifesta-o ao homem, mas parece não querer que este o compreenda. Há um elemento de maldade, de crueldade na imagem de Apolo, que se reflete na comunicação da sabedoria. E, de fato, diz Heráclito, um sábio: “o senhor, a quem pertence o oráculo que está em Delfos, não diz nem oculta, mas acena”.
esfera do conhecimento e da sabedoria liga-se com muito mais naturalidade a Apolo do que a Dionísio. Dionísio associa-se ao conhecimento enquanto divindade eleusínia: a iniciação aos mistérios de Elêusis culminava numa “epopsia”, visão mística de beatitude e purificação que de certa forma pode ser chamada de conhecimento.
No entanto, o êxtase dos mistérios, na medida em que é alcançado através de um despojamento completo das condições do indivíduo, na medida em que nele o sujeito cognoscente não se distingue do objeto conhecido, deve ser considerado como o pressuposto do conhecimento, e não o próprio conhecimento.
Pelo contrário, o conhecimento e a sabedoria manifestam-se por meio da palavra, e é em Delfos que é proferida a palavra divina, é Apolo, e certamente não Dionísio, que fala pela sacerdotisa. A palavra de Apolo é uma expressão em que se manifesta um conhecimento; as palavras de adivinhação na Grécia primitiva reúnem-se em discursos, desenvolvem-se em discussões, elaboram-se no abstrato da razão, símbolos iluminadores de todo o fenômeno da sabedoria.
Outro elemento frágil na interpretação de Nietzsche está em apresentar os impulsos apolíneo e dionisíaco como antitéticos.
Os estudos mais recentes sobre a religião grega ressaltaram uma origem asiática e nórdica do culto de Apolo. Aqui surge uma nova relação entre Apolo e a sabedoria. Um fragmento de Aristóteles nos informa que Pitágoras – justamente um sábio – foi denominado pelos crotoniatas como Apolo hiperbóreo.
Os hiperbóreos eram, para os gregos, um povo fabuloso do extremo norte. Daí parece provir o caráter místico, extático, de Apolo, manifestando-se no arrebatamento da pítia, nas palavras delirantes do oráculo délfico.
Nas planícies nórdicas e da Ásia central atesta-se uma longa persistência do xamanismo, uma técnica particular de êxtase. Os xamãs atingem uma exaltação mística, uma condição extática, na qual são capazes de executar curas milagrosas, ver o futuro e profetizar.
Este é o pano de fundo do culto délfico de Apolo. Uma passagem célebre e decisiva de Platão nos ilumina a esse respeito. Trata-se do discurso sobre a “mania”, sobre a loucura, que Sócrates desenvolve no Fedro. Logo no início, contrapõe-se a loucura à moderação, ao autocontrole, e, numa inversão paradoxal para nós, modernos, exalta-se a primeira como superior e divina.
Diz o texto: “os maiores dentre os bens chegam a nós por meio da loucura, que é concedida por um dom divino…de fato, a profetisa de Delfos e a sacerdotisa de Dodona, enquanto possuídas pela loucura, proporcionaram à Grécia muitas e belas coisas, tanto para os indivíduos quanto para a comunidade”. Coloca-se em evidência, portanto, desde o início, a ligação entre “mania” e Apolo.
Em seguida, distinguem-se quatro tipos de loucura: a profética, a dos mistérios, a poética e a erótica, as duas últimas variantes das duas primeiras. A loucura profética e a dos mistérios são inspiradas por Apolo ou por Dionísio (ainda que este último não seja citado por Platão).
No Fedro, em primeiro plano está a “mania” profética, tanto que, para Platão, a natureza divina e decisiva da “mania” é atestada pelo fato de essa mania constituir o fundamento do culto délfico. Platão funda seu juízo numa etimologia: a “mântica”, isto é, a arte divinatória, deriva de “mania” e é sua expressão mais autêntica.
Portanto, a perspectiva de Nietzsche deve ser não só ampliada, mas também modificada. Apolo não é o deus da medida, da harmonia, mas do arrebatamento, da loucura. Nietzsche considera a loucura pertinente apenas a Dionísio e, além disso, delimita-a como embriaguez.
Aqui, uma testemunha com o peso de Platão sugere-nos, pelo contrário, que Apolo e Dionísio possuem uma afinidade fundamental, justamente no terreno da “mania”; juntos eles esgotam a esfera da loucura, e não faltam bases para formular a hipótese – atribuindo a palavra e o conhecimento a Apolo, e a imediatez da vida a Dionísio – de que a loucura poética é obra do primeiro, e a erótica, do segundo.
Concluindo, se uma pesquisa sobre as origens da sabedoria na Grécia arcaica leva-nos em direção ao oráculo délfico, ao significado complexo do deus Apolo, a “mania” mostra-se-nos ainda mais primordial, pano de fundo do fenômeno da adivinhação. A loucura é a matriz da sabedoria.
Giorgio Colli (1917-1979) é conhecido sobretudo pela edição crítica das obras de Nietzsche, publicada na Alemanha, França e Itália, e por uma edição hoje clássica do Organon, de Aristóteles, tendo dedicado os últimos anos de sua vida à edição dos textos pré-socráticos.
É interessante perceber como o autor interliga a origem da filosofia – identificando-a como um novo gênero literário “inventado” por Platão – com a decadência da antiga sabedoria já então fragmentada e quase esquecida, derivada essencialmente da religião grega, seus mistérios e tradições orais.
Apoiado principalmente em Nietzsche, ele identifica um paralelo originário entre os primeiros refinamentos do pensamento abstrato grego – aquilo que, no ocidente, viria a ser chamado de “razão” ou “racionalidade” – e a tradição poético-religiosa da Grécia antiga, um manancial de sabedoria que permeia toda a sua rica mitologia, relacionada por sua vez com a “mania”, ou “loucura” divina.
Aliás, tal paralelo, penso eu, cabe ao estudo da mitologia e das tradições religiosas de qualquer povo, pois todas as culturas humanas sobre a face da Terra desenvolveram algum tipo peculiar de sabedoria ligada não somente aos cuidados com a esfera do transcendente como com a esfera do dia-a-dia, do conhecimento prático e utilitário, e o que é mais interessante: em todas elas ambas as esferas estão intimamente relacionadas, de uma forma ou de outra.
Uma passagem específica do texto chamou minha atenção por um aspecto curioso: a necessidade de ir procurar tão longe uma tradição religiosa que explique o “transe divinatório” das pitonisas délficas, ou seja, num suposto xamanismo nórdico ou centro-asiático, quando a vizinhança geográfica do Mediterrâneo com a África dá subsídio a hipóteses muito mais plausíveis, em minha modesta opinião.
Publicado antes em Theorykal - [Adaptado do capítulo I do livro "O NASCIMENTO DA FILOSOFIA" de autoria de GIORGIO COLLI, publiado pela Editora da UNICAMP em 1996, traduzido por Federico Carotti]
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