O mundo se divide entre os que encontram e os que nem sabem onde puseram.
(Millôr Fernandes)
Dia desses, levo adiante o projeto de escrever uma preceptiva, quer dizer, um manualzinho que descreva situações controversas em sala de aula. Como todo professor que se preza é um aluno-continuado, o livro traria amostras de diálogos e análises que sugeririam modos alternativos de amenizar “o clima” e resolver os conflitos entre estudantes e professores(as). De ambas as perspectivas. Em suma, seria uma pretensioso tratado de boas-maneiras, com o perdão do acento moralista, centrado na relação ensino-aprendizagem.
É de supor que os exemplos discutidos no volume seriam pautados pela perspectiva do autor. Quando se leciona há mais de 20 anos, suponho que tenhamos algo de útil a dizer, a partir dos ensinamentos formais e informais que recebemos. De todo modo, quero crer que isso não impediria – antes, favoreceria – exercitar a difícil tarefa de nos colocarmos no lugar de outrem, inclusive naqueles momentos em que a razão, aparentemente, está conosco.
Quando o projeto se materializar, a primeira seção versará sobre os variados modos de discordarmos uns dos outros em sala de aula. Nisso posso sair favorecido por ter vivenciado numerosas situações em que alunos agrediram uns aos outros, verbalmente, por conta de visões diferentes sobre determinada questão. Isso costuma acontecer em três ou quatro situações:
1 – Quando o tema da aula encontra respaldo na leitura prévia do material extraclasse pela turma;
2 – Quando a questão lançada pelo professor soa polêmica aos estudantes;
3 – Quando um grupo de alunos que têm divergências pessoais disputa o poder de ter razão perante determinadas matérias; 4 – Quando um ou mais alunos são refratários ao teor da aula, “discordam” do método empregado ou questionam o que nomeiam “didática” do professor.
Obviamente, há variados modos de dizer o mesmo. É o que acontece, por exemplo, nos debates que, involuntariamente, estimulam a disputa dos estudantes por protagonismo. Digamos que, após analisarmos o capítulo fundamental de um romance epistolar do século XVIII, proponhamos uma questão como “O fato de a narrativa ser em primeira pessoa poderia ser considerado um fator que incrementa a qualidade da história?”.
Essa modalidade de enunciado visa a induzir o auditório a se posicionar, o que não implica, necessariamente, que o professor “goste de ver o circo pegar fogo”. Pelo contrário, sempre que lanço perguntas desse feitio, alimento a esperança de que uma resposta complemente (e não anule) a outra. Entretanto, após um pupilo se manifestar, quase sempre uma segunda voz se manifesta dizendo: “Discordo do Fulano!”. Dependendo do grau de timidez (ou disposição para o combate), Fulano retoma a palavra e apresenta sua réplica, a que se sucede a tréplica de Sicrano etc.
Pois bem, o que este episódio sugere? Que parte considerável dos nossos alunos aprendeu (alguns, desde o ensino básico) que a sala de aula antecipa o “mundo competitivo” dos negócios e do empreendimento. Portanto, parece haver uma disputa entre vencer uma ideia e se somar à palavra do outro.
Ora, depois de tanto tempo a lecionar, passei a diagnosticar esses embates como episódios de concorrência pessoal (e vaidade “acadêmica”), em que silenciar ou derrotar o colega assume importância muito maior que o debate, a troca de ideias. Ou seja, frequentemente superar o interlocutor importa bem mais que a reflexão sobre o tema em questão…
Pronto, acho que encontrei o título para o pequeno tratado: Arte da refutação solidária. Às primeiras linhas, este autor dirá que há modos alternativos de discordar dos colegas ou dos professores. Para isso, precisamos relembrar quanto pesam determinadas palavras, bem como o modo de utilizá-las.
Em lugar de “discordar totalmente” do vizinho de carteira, poderemos formular sentenças mais acolhedoras, tais como: “Em complemento ao que Fulano disse, penso que…”; ou: “Paralelamente à observação de Sicrano, seria produtivo discutir a postura da personagem retratada pelo narrador”; ou ainda: “Professor, aproveitando a sua pergunta, poderíamos discutir o tom confessional do livro?”.
Leia também: É papel dos pais apresentar aos filhos a vida como ela é, e não dizer como vivê-la
Repare-se que essa postura mais solidária pressupõe uma concepção diferente de ensino. Acima de tudo, ela repousa em maior humildade frente ao conhecimento, quase sempre constituído a partir de fragmentos em diálogo. Pode-se discutir de tudo na sala de aula: da crença à descrença; da concorrência à cooperação; do organograma às relações mais horizontais etc. A sala de aula só não pode prescindir do seu lugar no estímulo saudável ao pensamento crítico.
Texto de Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
Publicado originalmente no Jornal da USP