Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 

As ondas de doenças infecciosas no Brasil, iniciadas em 2018, continuam contaminando, em média, 25% da população. A primeira onda, em 2018, foi a dos alienados. A segunda onda chegou com a nave dos insanos. Morreu muita gente. A terceira reuniu os dementes, contaminados pelo vírus do ódio e da destruição do Estado e, a última, a do homeschooling, envolveu o desassossego de muitas famílias brasileiras.
Homeschooling é tema sobre o qual grande parte dos especialistas está de acordo entre si. A ideia não é boa, em princípio em razão de isolar a criança do convívio social. Mas é importante ressaltar: escola é uma coisa, família é outra. Separar para aproximar o caminho a ser percorrido.

Vários educadores renomados e com experiência na área educacional analisaram o tema e justificaram a inadequação do homeschooling à realidade brasileira citando, inclusive, problemas ligados à alimentação e à violência familiar. É sugestivo acrescentar, à discussão pedagógica, uma abordagem política.

Qual a origem deste hábito, homeschooling? Onde encontramos seus fundamentos? No exclusivismo da percepção dos membros de uma só família? No receio da diferença entre os humanos? Na impossibilidade de uma vida em uma comunidade política presidida pela liberdade de expressão e discussão?

Dentre os motivos destaco alguns deles. O primeiro se refere à forma de tratar “verdades”. Palavra com protagonismo em tempos de fake news. A suposição, por parte de algumas famílias, da existência de uma só verdade justifica os pais desejarem manter os filhos distantes de questionamentos envolvendo as suas convicções. A sensação de conhecer “a verdade única” e o fato de existir muita violência fora de casa justificam o esforço dos pais de proteger e isolar os filhos do perigo.

O segundo problema diz respeito à formação dos professores. As transformações ocorridas no mundo contemporâneo e a necessidade de preparar os jovens para os desafios de gênero, novas tecnologias e emprego (entre outros) exigem do professor e da escola um enorme preparo emocional, científico e cultural. Infelizmente grande parte dos professores brasileiros não recebeu formação adequada para os imensos desafios da atualidade e sobre eles recai a exigência de construir o difícil equilíbrio entre os estudantes, as famílias, a escola, a tecnologia e o mundo conectado nas redes.

O terceiro desafio diz respeito à incapacidade do Estado, por falta de recursos e qualificação da mão de obra, de montar estruturas para a conciliação entre família, escola e sociedade. O desafio é imenso, se, de fato, a intenção for conciliar. Por um lado, a família quer respeito aos seus pressupostos educacionais e, por outro, a escola tem que conciliar as diferenças entre as famílias, os professores e o sistema educacional.

É fácil? Não.

A importância da conciliação é enorme. Trata-se de um ensaio geral dos conflitos que permeiam a sociedade brasileira e o mundo. O primeiro ensaio da vida em sociedade é marcado pelo conflito e conciliação experimentados na escola. O tema (conflito e negociação) permeia não só os vínculos escolares, como se constitui em pauta de todas as relações em nível pessoal, nacional e internacional. A importância da escola no exercício desta prática é imensa. Inaugura o caminho em direção a uma vida civilizada. Cabe à escola o papel de introduzir os estudantes e suas famílias no trato com as fronteiras dos diferentes territórios familiares (atualmente muito distintos) montando as bases da sociedade civil.

A negociação é uma arte própria da política. A negociação se ensina e se aprende, da mesma forma com que ensinamos e aprendemos física. A arte da retórica, da definição de hipótese, da argumentação e comprovação, a montagem do contraditório e a solução dos impasses são fruto de um extenso aprendizado. Nascemos com mais habilidade para brigar do que para conciliar. Em caso de dúvida, observem as crianças.

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No Brasil, os brasileiros conheceram, ao longo de sua história, o pensamento único, o autoritarismo e seus heróis. Pobres e ricos foram preparados, cotidianamente, para mandar e obedecer, apenas. A frase: “Você sabe quem está falando?” tem origem em solo brasileiro.

A escola e a simples alfabetização foram, por anos, deixadas de lado. É justo cobrar das escolas com tão poucos recursos e professores mal pagos, criar as condições para resolver os imensos conflitos propostos pela modernidade?

É o que está acontecendo.

O problema ficou grande demais e os pais das crianças sem condições de enfrentar os desafios do contraditório postos no mundo atual resolveram: “Pelo amor de Deus fiquem em casa, não quero mais problemas no meu dia a dia”.

A proposta de homeschooling é um grito de desespero das sociedades democráticas, educadas democraticamente apenas na sua cúpula, mas autoritárias nas suas extensas bases. Fala-se muito em contraditório. Mas enfrentar o contraditório numa reunião de pais, em escolas de periferia, com professores nem sempre habilitados para este enfrentamento, não é fácil.

A dúvida, precioso ingrediente da razão, aliada da dedução, da experiência e da comprovação, é ingrediente sofisticado na vida escolar. É fruto do conhecimento, das práticas científicas e da razão. Precisa ser ensinada e praticada cotidianamente.

É fácil fazer a pergunta certa diante de um problema? É fácil defender a razão?

Não. Precisa de aprendizado em filosofia.

A narrativa desenvolvida no ambiente familiar é voltada para as emoções, afetos cotidianos, tradições e hábitos próprios à cada família. Já na escola as práticas retóricas visam ao debate, a elaboração de argumentos, o respeito ao contraditório e o uso da razão. Crianças na escola participam de uma microexperiência do viver em sociedade, na pólis. Elas descobrem, brincando, que os vizinhos, mesmo aqueles de hábitos diferentes, não são inimigos. A escola, por meio dos professores, patrocina, administra e protege o respeito à diferença criando as condições para um convívio sadio, sem exclusões.

O professor pode explicar, por exemplo, a sofisticação que envolve comer com pauzinhos sem levar à mesa instrumentos cortantes; é costume no Oriente, onde a faca, por educação, não deve ser levada à mesa. Ou, ainda, o hábito, delicado, de levar o seu próprio guardanapo ao ir comer na casa de amigos. Conhecer e viver amigavelmente tanto com os vizinhos, defensores da floresta, como com os parceiros comerciais sejam eles chineses ou indianos (entre outros), é tarefa importante na montagem de um mundo civilizado e globalizado.

As descobertas proporcionadas pelo convívio na escola são muitas. Vão além de ensinar a ler, escrever e contar. A escola nos ensina a viver em sociedade, reconhecer o justo para além da família, compreender proporções, avaliar, se existe ou não, a equidade e a isonomia no país em que se vive.

A raiz da democracia é a amizade. Ela é a artesã do tecido social. O tear é a escola capaz de fazer a trama entre a família, os amigos e a escola, compatibilizando velhos e novos hábitos. Só com o auxílio do diálogo entre os amigos estudantes, a família e a escola, é possível diminuir a tensão dos problemas fronteiriços.

Os desafios do mundo contemporâneo são imensos e exigem a formação de um novo profissional capaz de conciliar as partes em conflito. Isolar os estudantes em casa, proibir amizades entre adolescentes é colocar lenha na fogueira. A família fechada tende à exclusão, do amigo, do emprego, da participação política. Não raro silencia ou desqualifica o Outro, o diferente, o forasteiro, o estrangeiro com feições e hábitos distintos. A família tende a preservar a autoridade do patriarca, garantir o seu poder, a sua riqueza e, muitas vezes, sem perceber, estimula o medo à diferença.

Viver envolve risco?

Sim?

É possível viver isolado?

Difícil.

Precisamos da sociedade para sobreviver, expandir os afetos, fazer amigos, arranjar emprego, praticar esportes, nos divertir e rir. Se precisamos da vida em sociedade, é melhor saber lidar com ela. Reconhecer os lugares amigáveis, os perigosos e, especialmente, ter consciência do projeto de vida possível de levar à frente.

A escola representa a pólis, a vida na cidade, lugar do ajuste, difícil, entre as partes. A variedade de professores em uma escola, de conhecimento e de sensibilidades variadas permite ao estudante encontrar distintos modelos de identidade. E, entre inúmeras variáveis, por meio da prática do seu livre-arbítrio, escolher os amigos e qual será o desenho, possível, para o seu projeto de vida.

Ser livre é perigoso?

Sim.

Vale a pena caminhar?

Do meu ponto de vista, sim.

Trata-se de um exercício, longo, de fineza de espírito. 

Texto publicado no Jornal da USP







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