Muitas pessoas ignoram o que querem e, também, o que sentem, são cheias de dúvidas e indecisões, parecem não possuir uma experiência definida de seus desejos e necessidades. Comumente sentem angústia, solidão, medo e ansiedade. Seu senso de realidade surge daquilo que os outros dizem e pensam dela. São pessoas vazias, que não possuem autonomia e renunciam a uma vida autêntica e feliz. Para essas pessoas, nada melhor do que seguir o exemplo das crianças. Ser criança é tornar-se livre. O filósofo alemão Nietzsche compreendeu muito bem essa verdade.
A criança é pura espontaneidade, necessidade, liberdade, não sente culpa, não tem malicia, é inocência e sua vida consiste em brincar. Ser criança é não guardar mágoa, esquecem o que fazemos a elas. Elas vivem na volúpia do momento, são seres que não conhecem o tempo, vivem dia-a-dia, hora-a-hora. São seres extraordinários, que sempre falam a verdade. Já nós adultos construímos nossas vidas com os muros da mentira. Iludimo-nos, enganamo-nos e achamos que a culpa de nossas frustrações está na vida. O que ignoramos é que, para viver, devemos abandonar uma grande parte de nossos sonhos e desejos. Os sentimentos gregários, a moral, a religião, as crenças e as ideologias nos levam a uma vida inautêntica. Por estas razões, devemos prestar atenção às crianças.
Para Nietzsche, a criança é um espírito livre, ela representa a superação dos valores morais e a criação de novos valores. Ela é pura vontade, puro desejo e pura espontaneidade. A criança é a afirmação da vida, mas também é o esquecimento. Ela deseja a vida, o prazer e as brincadeiras, mas não sente culpa por isso. Elas se esquecem das surras e das injúrias.
Somente as crianças podem criar novos valores. Somente elas podem criar novos universos através de sua imaginação. A criança é em sua própria natureza um artista. Ao brincar ela cria e recria, constrói e destrói, pinta e apaga tal como o artista. Ela é livre para criar novas realidades. Quando somos crianças, somos espontaneidade, liberdade e vontade. A criança parte de uma perspectiva afetiva. Ela não entende o mundo dos adultos, faz porque deseja, faz porque gosta, faz sem pensar.
Essa capacidade da criança de liberdade e autonomia foi perdida quando nos tornamos adultos. O homem abandonou seu lado infantil. O desejo e a afetividade humana foram reprimidas para não exercerem sua força e tornarem-se dóceis. Elas foram subjugadas pelo convívio social. O homem civilizado, que sabe diferenciar entre o útil e o prejudicial, o bem e o mal, o certo e errado, internalizou as normas e regras de conduta, os modos de ser, de pensar, de agir, de sentir e de valorizar por um longo processo de “domesticação” no interior das práticas sociais. O homem moral, responsável, virtuoso, de caráter firme e reto surgiu por um longo processo doloroso na história da humanidade. Foi longo o processo que transformou os “impulsos animais” em “impulsos humanos”. Se estudarmos a história das leis penais e das práticas religiosas, em toda história da civilização, vamos perceber que elas formam um sistema de crueldades, que domesticaram o homem para viver em sociedade. O homem aprendeu a ser bom e responsável através das leis penais e da religião.
Através dos bons costumes o homem civilizado aprendeu a sufocar seus afetos e seus desejos. Ele não segue o seu sentido interno tal como a criança. Ele nem ao menos sabe o que sente e o que quer. Para muitos homens, é difícil se libertar do peso, da carga que nos impõe a vida, e dos valores que nos subjugam. Somente a criança é livre e autônoma. “A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação”. (NIETZSCHE, 2004, p.35)
Para Nietzsche, a natureza humana é uma pluralidade de impulsos e afetos, tal como percebemos nas crianças. Desse ponto de vista, a natureza humana surge ligada à vontade, ao poder e ao crescimento da força. Todos os impulsos humanos buscam dominar e todos eles buscam prevalecer uns sobre os outros. Essa luta é a causa da eterna impermanência da natureza humana. O espírito humano é uma estrutura social de impulsos e afetos, ávidos por dominar. O objetivo da vida não é a busca da auto-conservação ou busca da felicidade, o que todo ser vivo quer é um pouco mais de força, um pouco mais de potência. A vida é vontade de potência.
A vontade de potência é causalidade afetiva. A afetividade, entendida como uma pluralidade de impulsos e desejos, seria a causa atuante da vontade. “A vontade não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas, sobretudo um afeto: aquele afeto de comando (…)” (NIETZSCHE, 2003, p.24). A vontade é um afeto de assenhorear-se, desejo de ter, dominar tal como a criança experimenta. O desejo aumenta o que se quer possuir e até cresce quando não satisfeito. O conceito de vontade se estende a toda vida. Onde há força, há uma vontade atuante. A vontade é a essência de qualquer poder. Dessa forma, o mundo é vontade, na mesma medida em que é afetividade. Afetividade é o termo que exprime o mundo mecânico e a pluralidade da nossa vida interior.
Nietzsche não vê a vida como algo trágico. Suas palavras de horror e miséria em relação à vida, que podem ser verificadas em seus textos, representam na verdade um prenúncio de liberdade, de superação da condição humana. A moral, a religião, a metafísica, que supostamente afirmam a autonomia da vontade, tornando o homem responsável pelos seus atos e arrogando-se no direito de julgá-lo, na verdade representam o cárcere da alma. Nietzsche se afasta dessa tradição moral e vê a vida como obra de arte. Na vida não há regras. O mundo é estético e não moral. O mundo é uma eterna ausência de ordem, onde não há encadeamento de formas, nem de beleza, mas somente luta e contradição. O mundo é fluxo, devir, é o caos de formas incessantes, eternamente mudando, eternamente criando e recriando. O mundo é como uma criança brincando, eternamente construindo e destruindo. Dessa concepção estética do mundo, surge o fundamento da autonomia humana. O homem é um eterno criador de valores. O homem tem a liberdade de criar e recriar novos valores, fazendo e desfazendo avaliações. Com isso, ele deve ser como uma criança ao brincar, pois construir e destruir faz parte da natureza infantil. A criança está além do bem e do mal.
Bibliografia
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do porvir. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Comp. das Letras, 2003.
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zarathustra. Martin Claret: São Paulo, 2004