François, Duque de La Rochefoucauld, foi um importante intelectual francês do século XVII. Tendo sido um dos introdutores do gênero de máximas e epigramas (gênero no qual sua principal obra, Máximas e Reflexões Morais, foi escrita), influenciou profundamente filósofos como Friedrich Nietzsche e Émil Cioran. O texto abaixo foi extraído da obra mencionada.
Da Relação dos Homens com os Animais
Há tantas espécies de homens quanto de animais, e são os homens uns para os outros o que as diferentes espécies de animais são entre si e para as demais:
Quantos homens não vivem do sangue e da vida dos inocentes!
Uns, como tigres, são sempre bravios e cruéis;
Outros como leões, guardam certa aparência de generosidade;
Outros, como ursos, são ávidos e grosseiros;
Outros como lobos, são raptores impiedosos;
Outros como raposas, vivem de sua indústria, têm por ofício lograr.
Quantos homens não têm parte com os cães! Destroem sua própria espécie, caçam para o prazer de quem lhes dá de comer, às vezes, seguem os donos, outras lhe guardam a casa.
Há lebréus de guerra que devem a vida ao próprio valor, que têm nobreza na coragem;
Há dogues encarniçados que só o furor têm por qualidade;
Há cães menos ou mais inúteis que ladram sempre e só às vezes mordem.
Há mesmo os cães de guarda que nem comem o que é do dono nem deixam os outros comerem.
Há símios e macacas que agradam pelas maneiras, que têm o espírito e fazem o mal;
Há pavões que só beleza têm, cujo canto desagrada e que destroem o lugar onde habitam.
Há pássaros que só se recomendam pela plumagem e pelas cores.
Quantos papagaios não falam sem cessar e nunca ouvem o que dizem;
Quantas pegas e gralhas não se deixam amansar para melhor furtar;
Quantas aves de rapina não vivem só da rapina;
Quantas espécies de animais pacíficos e tranquilos não servem só de comida aos outros animais!
Há gatos, sempre a espreita, maliciosos e infiéis, que têm pata de veludo;
Há víboras de língua venenosa cujo o restante tem emprego, há aranhas, moscas, pulgas e percevejos sempre incômodos e insuportáveis;
Há sapos que só dão pavor e veneno;
Há corujas que temem a luz.
Quantos animais não vivem debaixo da terra somente para se preservar!
Quantos cavalos não empregamos em tantas coisas e não abandonamos quando já não servem;
Quantos bois não trabalham a vida toda para enriquecer aquele que lhe impõe o julgo;
Quantas cigarras que passam a vida a cantar;
Lebres que de tudo têm medo;
Coelhos que se assustam e sossegam no prisco;
Porcos que vivem na devassidão e no lixo;
Canários domesticados que logram seus semelhantes e os atraem para rede;
Corvos e abutres que só vivem da podridão e corpos mortos!
Quantas aves de arribação vão de um mundo para outro e se expõem a perigos em busca da vida!
Quantas andorinhas sempre à procura de um bom tempo;
Besouros irrefletidos e sem rumo…
Borboletas que anseiam pelo fogo que as queima;
Abelhas que respeitam a rainha e com a regra se mantêm!
Quantos zangões errantes e preguiçosos que procuram se estabelecer as expensas das abelhas!
Quantas formigas cuja previdência e economia lhes alivia as necessidades!
Quantos crocodilos que fingem derramar lágrimas para devorar quem com elas se comove!
E quantos animais subjugados porque ignoram sua força!
Texto extraído do livro Máximas e Reflexões Morais