Por João Marcos Buch – autor e desembargador substituto
Era final de semana, eu havia ido a Joinville, para um evento cultural e para essencialmente rever amigos, prestar apoio a alguns, ser apoiado por outros, em síntese, para viver humanidades. Foi tudo muito bom, consegui abraçar os afetos e com a sensação de missão cumprida, domingo cedo, dei um último sorriso e tracei a rota de volta para minha nova casa, em Florianópolis.
Uma das saídas da cidade é pela zona sul. Nesse sentido, envolto a pensamentos, incondicionalmente peguei a via que leva ao complexo prisional, também na zona sul da cidade. Quando me dei conta, já estava a menos de um quilômetro do local. Parei o carro, fiz meia volta e, resoluto, dirigi-me ao trevo de saída. A mudança era irrevogável.
Dizem que o recomeço não é característica de quem está feliz. Talvez, então, eu não estivesse feliz. Foram mais de duas décadas em uma cidade que me acolheu, que me proporcionou conhecer profissionais admiráveis, ser instrumento da cidadania. Principalmente, permitiu ganhar amigos extraordinários, daqueles para a vida toda, em que se pode confiar de olhos fechados, por assim dizer. Entretanto, também foi um tempo de muita dor, não diria injusta, mas produto da incompreensão. A miséria de tratamento a que algumas vezes fui submetido, por fazer meu trabalho, só foi superada porque eu sabia estar do lado certo da história e porque tive (tenho) pessoas que se postaram ao meu lado, incondicionalmente, e me defenderam, por vezes, inclusive, carregando-me.
O fato é que, quando a hora chegou e a carreira exigiu seu espaço nos meus planos, eu mudei! Mudei de cidade, mudei de local de trabalho, mudei meus hábitos. Olhei para a frente, sempre para a frente, aliás, nunca fui nostálgico e o que mais fiz na vida foi olhar para a frente. Perante essa nova mudança, para a frente, tive certeza, ainda tenho, que me adaptaria, mesmo sentindo-me enraizado em todo lugar e desenraizado em todo lugar.
Se me perguntarem se estou satisfeito com minha nova morada, direi que sim. A cidade é linda, tem variadas expressões políticas, inúmeras cenas culturais, muitos espaços de lazer e de esportes. E o por do sol é especialmente maravilhoso. Não há como não gostar! Tenho, também aqui, afetos de muitos e de poucos anos, pessoas sinceramente felizes por me terem mais perto. Igualmente, se me perguntarem se estou indo bem na nova área de atuação, responderei sem pestanejar que sim. Estou com o ânimo renovado, com mais vontade de estudar, folhear processos, discutir casos, debater, é como se eu estivesse iniciando minha carreira, aos 24 anos. O direito e a jurisdição são minhas paixões, independentemente da matéria, ainda mais quando cercado de assessores dedicados, competentes, companheiros que olham pela mesma janela, a janela das garantias fundamentais, da justiça solidária, dos princípios do direito. E, além disso, os colegas e servidores são muito acolhedores, generosos.
E eis que, naquele dia, na direção de meu carro, o velho pássaro azul de Bukowski outra vez agitou suas asas em meu peito, fazendo-me sair do traçado, sussurrando em meus ouvidos que nada poderia resultar em esquecimento, abandono.
Já contei que mandei uma carta de despedida aos presos. Nela expliquei sobre minha saída da vara de execuções penais e reafirmei meu compromisso em levar comigo suas vozes, as vozes invizibilizadas e sufocadas do cárcere, sempre na retaguarda dos direitos humanos e da Constituição.
Entretanto, no dia em que sem pensar me dirigi à prisão, senti o que não queria sentir: fui embora, mas a extrema injustiça ficou.
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Eu tinha deixado os presos, eu os largara nas condições duras em que se encontravam, sem conseguir atenuar sua dor, eu, o juiz em quem eles tanto confiavam. Era como se eu os tivesse convidado a entrar na catedral, mas, quando aceitaram o convite, não escutei suas preces, seus lamentos, suas súplicas. Será que eu os tornara reticências, páginas não lidas, selos não colados?
Não tenho a arrogância de me achar insubstituível, não é disso que se trata. Há outros atores jurídicos que pertencem às mesmas causas da dignidade da pessoa e que desenvolvem práticas relevantes para os direitos humanos. Também não sou pessoa que se alimenta da tragédia alheia e faz dela a sua razão de existir. Sempre sonhei com o fim do juiz da execução penal, a partir do fim das prisões, com lugares respeitadores da célula humana, antirracista, onde o ato de pedir um pedaço de pão não seja considerado crime porque vindo detrás das grades.
Naquela manhã de domingo, eu viajaria livremente, com liberdade para, por exemplo, desviar o caminho e passear na praia. Já os presos, esses não só não veriam a praia como tinham ficado atrás daquele morro, em seus insalubres cubículos, amontoados uns sobre os outros, famintos, adoecidos, abandonados. Cheguei a imaginar que eles esperavam meu retorno. Eu adentraria nos pátios e corredores e veria como estavam, anotaria seus pedidos, faria reuniões e resolveria sobre alimentação, saúde, visitas, processos. Obviamente que isso era conjectura, essa de me esperarem, não sou assim tão egoísta e tão recheado de autoestima.
Os presos, em qualquer tempo e lugar, esperam por alguém que lhes leve honestidade e franqueza e que olhe para sua condição de encarcerados, alguém que os ouça, que não os use como massa de manobra, que, em última análise, respeite-os e respeite suas famílias. Ainda assim, da direção de meu carro, por uma rodovia permeada de lindas paisagens, eu via dezenas de olhos a me mirarem, esperançosos. Nunca quis ser a encarnação da esperança a quem está preso, mas em algum momento eu me tornei isso.
Agora, o tempo da mudança chegara para mim. Só o que eu desejava, de coração aberto e potente, era que um dia essa mudança também chegasse para os presos. Se eu era a esperança deles, tinha que fazer por merecer.
Logo cheguei em casa, sereno e decidido! O pássaro azul adormecera outra vez. Por quanto tempo? Jamais saberia.
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