No “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, encontramos uma sociedade extremamente desenvolvida tecnologicamente, em que o progresso atingiu os níveis máximos de “evolução” esboçados e sonhados no século XIX. Em contrapartida ao desenvolvimento técnico, não se percebe necessariamente o mesmo no sentido humano, uma vez que há controles sociais “invisíveis”, construindo muros nas mentes humanas, alienação e condicionamento pelo excesso de “informação” e “divertimento”, uso de drogas para manter os níveis de felicidade e satisfação sempre altos (o soma), e segregação social a partir de determinismos biológicos, algo que encontramos parecido no filme “Gattaca – Experiência Genética”.
Traçando um paralelo com a nossa realidade, perceberemos que as características da sociedade apresentada no livro são facilmente encontradas na nossa, o que demonstra quão importante é o livro (e outras distopias) na compreensão do mundo contemporâneo. A despeito da segregação e, consequentemente, das desigualdades sociais decorrentes desta, há um trecho no livro que exemplifica com exatidão instrumental o modo como o sistema se organiza:
“O Selvagem suspirou profundamente.
— A população ótima — disse Mustafá Mond — obedece ao modelo do iceberg: oito nonas partes abaixo da linha de flutuação e uma nona parte acima dela.
— E são felizes os que estão abaixo da linha de flutuação?
— Mais felizes do que os que estão acima dela. Mais felizes do que os seus dois amigos aqui, por exemplo. — E apontou para eles.
— Apesar daquele trabalho horrível?
— Horrível? Eles não acham. Pelo contrário, até gostam. É leve, de uma simplicidade infantil. Nenhum esforço excessivo da mente nem dos músculos. Sete horas e meia de trabalho leve, de modo algum exaustivo, e depois a ração de soma, os esportes, a cópula sem restrições e o cinema sensível. Que mais poderiam pedir?”
O trecho supracitado evidencia ainda mais o quanto a história de Huxley e a nossa sociedade se misturam, de tal maneira que se torna extremamente difícil distinguir uma e outra. O modelo do iceberg, que constitui a sociedade perfeita, em pleno equilíbrio e sem revoluções; e na mesma medida “friamente” desigual e injusta, é o que nos constitui, sobretudo, em um país que consegue ser referência nesse assunto, como o Brasil.
Um capítulo que desdobra o exposto é o que tem se desenrolado na atual conjuntura, o qual poderíamos nomear tranquilamente de “Terceirização: Os trabalhadores vivendo na distopia do capital”. Entretanto, não estou falando apenas da terceirização, mas também da reforma da previdência, de modo que precisaria encaixá-la em algum lugar desse título. Mas, saindo da ficção e retornando à realidade (ou seria o contrário?), encontramos um cenário de crise política e econômica, em que ao contrário do mais sensato e correto a se fazer, qual seja, cobrar dos delinquentes o delito cometido; o que se sucede é a cobrança total da conta em cima dos trabalhadores, como se estes fossem os culpados pelo estado em que encontra o país.
Evidentemente, é necessário discutir a previdência, que – diga-se de passagem –, não é um problema exclusivo do Brasil, mas do mundo, e até mesmo as leis do trabalhador. Ora, se vivemos em uma democracia, então, tudo é passível de discussão. Entretanto, quantas outras pautas de discussão e reforma não são urgentes? Nem por isso, vemos elas entrarem na ordem do dia. Além disso, medidas que modificarão de tal maneira a vida do povo precisam de uma discussão mais ampla e longa, e não simplesmente decisões unilaterais na calada das madrugadas legislativas.
Outro ponto imensamente importante de ser dito, divulgado, problematizado e cobrado é o montante que diversas empresas devem ao Estado, inclusive, à Previdência Social, mas que nem pela crise são cobradas. Todavia, como não estamos falando de uma balança justa, a conta dessa “não cobrança” (e, portanto, crime) tem que chegar para alguém, leia-se, os trabalhadores.
Os mais ingênuos podem achar um absurdo o Estado não cobrar das empresas o que elas devem ao Povo, obrigando este a pagar por algo que sumariamente era um crédito. Contraditório? Se analisarmos o sistema posto, não; já que existe uma relação nebuloso e perversa entre o sistema normativo/jurídico produzido pela classe política e as grandes empresas constituintes do poder econômico, consubstanciando nas relações desiguais, alienantes e exploratórias a que somos submetidos. É o que acima apareceu como “modelo do iceberg”. Se restava alguma dúvida que ele estava presente entre nós, acredito que neste momento, caiu por terra, ou por inferno… tanto faz.
Apesar disso, há os que defendem essas “reformas”, argumentando que serão benéficas para o trabalhador no frigir dos ovos. No entanto, como os próprios liberais dizem: “Não existe almoço de graça”, pelo menos para os trabalhadores, já que as megaempresas, como vimos, têm banquetes por conta da “casa”. Sendo assim, no fim da noite, alguém vai ter que pagar a conta e, todos sabem, mesmo que “timidamente”, a quem esse alguém se refere.
Embora ninguém goste de pagar por algo que não cometeu, parece-me que neste caso, “curiosamente”, as pessoas não estão muito insatisfeitas, afinal, quantas panelas estão sendo batidas na rua? É claro que não podemos nem devemos cobrar do Povo, posto que este não possui o “controle remoto” nas mãos. Contudo, quando a programação possui como fundamento maior nos programar, é hora se de virar e buscar um modo de transformar a realidade, o jogo, o sistema, o modelo do iceberg.
Se em outra grande distopia, o fogo era utilizado para destruir os livros e, por conseguinte, a consciência; que na nossa, o fogo seja a nossa própria consciência, para que longe de todos os subterfúgios e fantasias criados pelo sistema para nos manter como escravos, ele seja capaz de derreter os icebergs gelados e desumanos que nos olham como selvagens e nos mantêm na “maravilhosa” e reinventada condição de “Admirável Escravo Novo”.
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