Moçambicano, filho de mãe africana e pai português, José Craveirinha foi um gigante poeta militante. Sua obra tem enorme relevância na história de seu povo, visto que retrata de forma sensível em sua poesia as transformações no pensamento da intelectualidade moçambicana e as ideias que muniram a luta pela libertação nacional do jugo imperialista de Portugal.
A poética de Craveirinha, ainda que escrita em língua portuguesa, é fortemente carregada das expressões orais moçambicanas, como por exemplo da língua originária na qual também fora educado: o ronga.
O poeta traz em seus versos fortes imagens e motivos do imaginário popular e da tradição cultural africana, retomando esteticamente as origens nativas para se opor ideológica e politicamente ao presente colonial e preconizar um futuro livre para seu povo. Assim se dá a evocação do “era uma vez…” moçambicano, o “Karingana ua Karingana”.
Ao exaltar a cultura popular local de maneira orgulhosa, em oposição ao aculturamento imposto pelos colonizadores, Craveirinha faz uma ode à emancipação africana.
Craveirinha morreu em África aos 81 anos, foi o primeiro autor africano a receber, em 1991, o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa, entre muitos outros. Deixou o legado de quase uma dezena de livros escritos, e uma trajetória exemplar de resistência negra e combate contra toda forma de opressão e exploração.
Apresentamos aqui 5 maravilhosos poemas:
Os homens magros como eu
não pedem para nascer
nem para cantar.
Mas nascem e cantam
que a nossa voz é a voz incorruptível
dos momentos de angústia sem voz
e dos passos arrastados nas velhas machambas.
E se cantam e nascem
os homens magros de olheira funda como eu
não pediram a blasfémia
de um sol que não fosse o mesmo
para uma criança banto
e o menino africânder.
Mas homens somos
e com o mesmíssimo encanto magnífico
dos filhos que geramos
aqui estamos
na vontade viril de viver o canto que sabemos
e tomar também uma vida
a vida de voluntário que não pedimos
nem queremos
e odiamos na ganga africana que vestimos
e na ração de farinha que comemos.
E com as sementes rongas
as flores silvestres das montanhas zulos
e a dose de pólen das metralhadoras no ar de Sharpeville
um xitotonguana azul canta num braço de imbondeiro
e levanta no feitiço destes céus
a volúpia terrível do nosso voo.
Sharpeville e Cato Mannor, África do Sul, lugares onde ocorreram repressões policiais sangrentas sobre trabalhadores africanos, em 1960
José Craveirinha
E a nossa casa, Mãe
nosso lar de velhas paredes de caniço
já não está lá
no lugar onde o pai do pai do teu pai
ao sol e à chuva
em doze luas de trabalho
a construiu.
E no sítio da tua sepultura, Mãe
debaixo das mafurreiras de frutos de ouro
onde a bebida fermentava a missa de cocuana Matsinhe
pesam os muros de cimento
que o senhor das terras levantou
ao abrigo da lei da concessão de terrenos vagos
onde não existe ninguém
e só vivem negros
mulatinhos e negras.
Dentro das coordenadas geográficas
registadas numa planta do cadastro da circunscrição
dormes o teu sono perpétuo, Mãe
ao som das blasfémias que não chegaste a ouvir
mas gostarias de ouvir também contra eles
e quererias também sentir contra eles minha Mãe.
E hoje que a nossa casa de paredes de caniço
e os trinta e cinco pés de mandioca
foram esmagados pelas lagartas de aço
do monstro Caterpillar do senhor concessionário
o secular desespero
planta milho que não nasce
e mapira que não cresce mas dói
na latitude zero do talhão de pedras e cobras
da reserva indígena onde moram blasfemos
nós os negros, os mulatinhos
e as negras.
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.
Oh!
Meus belos e curtos cabelos crespos
e meus olhos negros como insurrectas
grandes luas de pasmo na noite mais bela
das mais belas noites inesquecíveis das terras do Zambeze.
Como pássaros desconfiados
incorruptos voando com estrelas nas asas meus olhos
enormes de pesadelos e fantasmas estranhos motorizados
e minhas maravilhosas mãos escuras raízes do cosmos
nostálgicas de novos ritos de iniciação
dura da velha rota das canoas das tribos
e belas como carvões de micaias
na noite das quizumbas.
E a minha boca de lábios túmidos
cheios da bela virilidade ímpia de negro
mordendo a nudez lúbrica de um pão
ao som da orgia dos insectos urbanos
apodrecendo na manhã nova
cantando a cega-rega inútil das cigarras obesas.
Oh! E meus belos dentes brancos de marfim espoliado
puros brilhando na minha negra reencarnada face altiva
e no ventre maternal dos campos da nossa indisfrutada colheita de milho
o cálido encantamento selvagem da minha pele tropical.
Ah! E meu
corpo flexível como o relâmpago fatal da flecha de caça
e meus ombros lisos de negro da Guiné
e meus músculos tensos e brunidos ao sol das colheitas e da carga
e na capulana austral de um céu intangível
os búzios de gente soprando os velhos sons cabalísticos de África.
Ah!
o fogo
a lua
o suor amadurecendo os milhos
a grande irmã água dos nossos rios moçambicanos
e a púrpura do nascente no gume azul dos seios das montanhas.
Ah! Mãe África no meu rosto escuro de diamante
de belas e largas narinas másculas
frementes haurindo o odor florestal
e as tatuadas bailarinas macondes
nuas
na bárbara maravilha eurítmica
das sensuais ancas puras
e no bater uníssono dos mil pés descalços.
Oh! E meu peito da tonalidade mais bela do bréu
e no embondeiro da nossa inaudita esperança gravado
o tótem mais invencível tótem do Mundo
e minha voz estentórea de homem do Tanganhica,
do Congo, Angola, Moçambique e Senegal.
Ah! Outra vez eu chefe zulo
eu azagaia banto
eu lançador de malefícios contra as insaciáveis
pragas de gafanhotos invasores.
Eu tambor
Eu suruma
Eu negro suaíli
Eu Tchaca
Eu Mahazul e Dingana
Eu Zichacha na confidência dos ossinhos mágicos do tintlholo
Eu insubordinada árvore de Munhuana
Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes
Eu caçador de leopardos traiçoeiros
E xiguilo no batuque.
E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti
Eu-cidadão dos espíritos das luas
carregadas de anátemas de Moçambique.”
Ao
António Bronze
Máquina começou trabalhar
com sol
com chuva
com farinha e feijão
máquina começou abrir chão.
Lua escondeu coração
saiu ouro
saiu pedra de lapidação
saiu barco cheio de máquina gente no porão
saiu notícia de menino morto boneco de carvão
saiu Cadillac novo de patrão.
Máquina começou trabalhar
com farinha de pilão
nasceu milho
nasceu machamba de feijão
nasceu máquina grande
nasceu pequenino deus de alcatrão.
Máquina começou trabalhar
máquina está trabalhar
até um dia enraivar
com farinha de pilão!…
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