Crianças permanentemente distraídas com o celular ou o tablet. Agenda cheia de tarefas e aulas depois da escola. Pais que não conseguem impor limites e falar “não”. Os momentos de lazer que ficaram restrito ao shopping Center, em vez de descobertas ao ar livre. Quais as implicações desse conjunto de hábitos e comportamentos para os nossos filhos? Para o pediatra Daniel Becker, esses têm sido verdadeiros pecados cometidos à infância, que prejudicarão as crianças até a vida adulta. Pioneiro da Pediatria Integral, prática que amplia o olhar e o cuidado para promover o desenvolvimento pleno e o bem-estar da criança e da família, Becker defende que devemos estar mais próximos dos pequenos – esse, sim, é o melhor presente a ser oferecido. E que desenvolver intimidade com as crianças, além de um tempo reservado ao lazer com elas, faz a diferença. Para o bem-estar delas e para toda a família.
A tecnologia é uma dimensão da nossa vida. Hoje o celular é televisão, loja, livro, cinema, brinquedo, meteorologista, até médico. O problema é a forma como utilizamos essa tecnologia. O excesso do uso do smartphone nos tira do convívio com o outro. Faz-nos mergulhar em uma distração sem fim, que nos remove do momento presente, dos relacionamentos, do afeto. Confunde o tempo de trabalho com o tempo de lazer e família, não preservando momentos fundamentais, justamente o período que deveríamos passar com os nossos filhos. Tira a comunicação, o olhar. As referências anteriores eram os pais e a família. E agora essas referências se diluem e se tornam apenas a mídia do smartphone, que está sempre ao nosso lado. Esse excesso de uso, que nos remove das relações mais importantes, é bastante perigoso.
A consequência quando os pais permanecem muito tempo online
A gente tem se queixado que as crianças ficam no smartphone, mas os pais que oferecem o aparelho aos filhos fazem isso para ter sossego e para eles próprios ficarem no smartphone, para que tenham um pouco de tempo para si. O problema, repito, é o exagero. Há pais que, enquanto examino o filho durante a consulta médica, ficam no celular. Estamos tomados por esses acessórios. Então é preciso analisar o contexto da família. O que está levando a esse excesso de imersão da criança no smartphone? Não adianta colocar toda a culpa na família; precisamos entender o contexto social e, a partir disso, propor mudanças e atitudes transformadoras. Qual comportamento estamos mostrando para os pequenos? Existe relação sem telefone? Onde a gente não leva o telefone? Vamos para o parque sem os aparelhos? Nas viagens de carro, há momentos de conversa? E durante as refeições?
Qual a importância de os pais acompanharem o que as crianças assistem, por exemplo? Repare em todos os desenhos onde existe pai e mãe. Veja como esse pai e essa mãe são representados. É impressionante. Sem teorias conspiratórias, mas muitos desenhos são bancados por publicidade. E a quem interessa dizer à criança que o pai é bobinho? A ridicularizá-lo? Se o papai diz que não é bom, ele é bobo, não sabe de nada. É dessa forma que os pais são retratados em inúmeras animações. Essa desautorização da família vem de um processo midiático e publicitário muito inteligente. Você acha que isso é à toa? Eu acho que a criança pode assistir TV, se os pais estiverem por perto e fazendo uma mediação; se interagir com a criança enquanto ela assiste ao desenho e desenvolver essa visão crítica nela sobre como os pais estão sendo retratados, há salvação. Mas, se a criança está imersa, sem os pais por perto, é muito difícil que não absorva esses valores distorcidos.
O tédio é necessário para desenvolver a mente
A vida urbana não permite que a criança extravase sua energia. Tem criança que fica de oito a dez horas conectada a aparelhos, seja o smartphone, o tablet ou mesmo a TV. Elas não têm mais direito a um momento de consciência. Elas ficam o tempo todo distraídas, ocupadas, ‘ligadas’. E o tédio é a fonte da criatividade. A mente vazia é aquela voltada para si mesma, com pensamentos mais autorreflexivos. É aí que vai surgir a criatividade, e não em uma mente preocupada em consumir conteúdo que só a distrai, como nos celulares. Aula de inglês, vôlei, natação são bacanas, pois a aquisição de habilidades é ótima. Mas desde que venha contrabalanceada com horas livres. A criança precisa de tempo desestruturado para brincar. E não fazer só um roteiro estipulado pelos outros, só absorver as mensagens externas. Ela precisa da possibilidade de chegar em casa e brincar com o que quiser, ou ir para o parque e se divertir como preferir. Brincar sozinho também é uma atividade geradora de inteligência, de criatividade, de lidar consigo mesmo. O brincar é uma arte que simula a vida. A criança que sabe brincar é um adulto que sabe viver. Os pais precisam inserir seu filho em um mundo onde há brinquedos, em que ele pode assumir o papel ativo, criar um roteiro, dizer quem é aquele personagem que inventou. Se você oferece um boneco do Homem Aranha, por exemplo, o roteiro já está dado. Não há imaginação. O tédio não é deixar o filho sem fazer nada. É permitir, por exemplo, que ele possa ficar no balanço de uma pracinha. Sobe e desce. É um momento dela com ela mesma, uma meditação.
As formas de lazer que as crianças têm
Percebo que cada vez mais pessoas preferem o shopping center ao parque. E o shopping nada mais é do que a extensão desse sistema de consumo, de publicidade. O lazer virou consumo, o consumo virou lazer. Nesse centro de compras, a criança vai ter a continuidade das mensagens que recebeu na TV, no celular, no tablet. Ela viu o anúncio do brinquedo e vai chegar no shopping e ir correndo para a loja. Muitas famílias desperdiçam recursos preciosos comprando brinquedos caros que já vêm com o script pronto, não oferecendo um bom mecanismo de desenvolvimento à criança. É uma pena que o lazer esteja se tornando o shopping. A natureza é ótima para a família como um todo. Tenho trabalhado para que esse tema vire uma bandeira de toda a sociedade. O lazer externo traz inúmeros benefícios. Ele afasta um pouco a gente da tela. Não dá para andar de bicicleta, correr ou subir na árvore com um tablet na mão. Também é uma forma de melhorar o convívio direto e interativo entre pais e filhos. Além disso, essas crianças vão ver crianças diferentes, branco vai ver negro, criança pobre vendo criança rica. O convívio com as diversidades gera empatia e compreensão das diferenças. Além, é claro, dos benefícios da própria vivência ao ar livre, o sol, o vento, as árvores. Eles reduzem agressividade, alergias, distúrbios do sono, melhoram a socialização e aumentam a inteligência, além de outros inúmeros benefícios comprovados cientificamente.
Trecho da entrevista de Daniel Becker à Débora Zanelato, do site Vida Simples Digital
DANIEL BECKER é pediatra formado pela UFRJ e mestre em Saúde Pública pela FIOCRUZ. Foi pediatra do Médicos sem Fronteiras na Tailândia e um dos criadores do Programa de Saúde da Família. Fundou e trabalhou no Centro de Promoção da Saúde (Cedaps), ONG que é referência em saúde de comunidades populares. É pioneiro da Pediatria Integral e também atua como palestrante, escritor e consultor de fundações e empresas