Psicologia e Comportamento

Antes de maltratar um atendente de telemarketing, saiba tudo o que não te contaram sobre a rotina de trabalho de um call center

Por Felipe de Souza

do Blog Conti Outra

Você, com certeza, já perdeu a paciência com alguma ligação do pessoal do telemarketing ao longo dessa semana. E eu não te julgo, é irritante mesmo. Às vezes são várias ligações por dia em que a linha fica muda e depois cai. E o pior, quando a ligação não cai, o atendente te enche de perguntas com aquela voz robótica e depois te deixa esperando na linha por longos minutos enquanto ele procura qualquer coisa no sistema – quase sempre inoperante. Sim, eu também me irrito quase todos os dias com o telemarketing, porém, antes de ofender o atendente e as próximas três gerações da sua família, eu me lembro de que já estive no lugar dele e sei o quão nocivo pode ser o ambiente de trabalho em um Call Center. Se ainda não te contaram o que acontece do outro lado da linha nessas ligações telefônicas que infernizam tanta gente todos os dias, me acompanhe neste relato.

Comecei a trabalhar no Call Center em 2010. Eu vinha de uma cidade do interior de São Paulo e tinha acabado de sair do Ensino Médio, então imagine a minha surpresa ao esbarrar, logo no meu primeiro dia de trabalho, com uma moça que foi trabalhar usando, com muita segurança e propriedade, uma espalhafatosa fantasia de demônio. O Call Center é um ambiente bastante democrático; boa parte das pessoas que trabalham ali são aquelas que, de alguma forma, estão à margem da sociedade, gays, lésbicas, travestis, pessoas com visuais considerados pouco convencionais, e até ex-presidiários. Lembro-me de pensar no meu primeiro dia, “Estou em uma festa rave!”. A impressão de festa rave, porém, se dissipou logo nos primeiros momentos do treinamento. Fui apresentado a uma infinidade inacreditável de telas pretas, teclas de atalho, sistemas e mecanismos com que eu trabalharia nos próximos meses. Era tudo tão novo e, à primeira vista, tão complicado, que eu quase surtei. Me apresentaram também a um script de uma página inteira de perguntas, frases e jargões que eu obrigatoriamente teria que usar em todos os meus contatos telefônicos no Call Center. Ah, e me disseram para que eu não perdesse muito tempo em uma única ligação. Eu teria que ser rápido e assertivo. E esse treinamento para me ensinar a ser um robô durou apenas dois dias. Sim, dois dias!

Depois do treinamento me levaram para a operação – um mar de pessoas com headphones falando ao mesmo tempo aquele script engessado; uns gritando, outros tentando argumentar qualquer coisa com seus clientes irritados; e, transitando entre os atendentes, uns dois ou três supervisores gritando a plenos pulmões;“Vamos bater a meta, gente! Falta pouco!”

– É claro que fiquei em pânico, mas como não sou de ceder aos meus medos, sentei-me na minha PA – uma mesa com um computador e um headphone – e puxei a primeira ligação. Logo na primeira, um cliente se irritou com a minha falta de prática e, sem nenhum constrangimento, me mandou ir pro inferno. Foi grande a tentação, mas não dei a resposta que eu queria, “Vá você primeiro!”.

E o dia a dia na operação era muito mais frenético do que eu tinha imaginado. O sistema usado na maioria dos Call Centers faz várias ligações simultâneas e aleatoriamente, sem que ninguém precise discar o número de telefone das pessoas, aí a ligação cai para o primeiro atendente que estiver com a linha desocupada. Com certa frequência, o sistema lança ligações e nenhum atendente está disponível, então a pessoa do outro lado da linha atende o telefone e ele fica mudo por uns três segundos, depois a ligação cai. Cerca de dez ou vinte minutos depois, o sistema liga de novo para essa pessoa. Então muitas vezes a ligação caía pra mim e o cliente já atendia berrando palavrões terríveis, pois já tinha recebido umas cinco ligações mudas nas últimas horas. E imagine a reação daquele cliente ao me ouvir perguntando seu CPF, seu endereço, o nome da sua mãe, o seu e-mail e, depois de tudo isso, cobrando que ele efetuasse o pagamento de uma dívida que já estava prestes a caducar.

“Não leve as ofensas para o lado pessoal!”, disse a moça no treinamento. Mas às vezes era difícil não levar para o lado pessoal. Muitos clientes debocham do tom de voz do atendente, do seu sotaque, do seu vocabulário; isso quando os clientes não partem para a humilhação, dizendo coisas pesadas, como “tenho pena de você, porque você é um coitado ignorante que nunca vai chegar a lugar nenhum longe do Call Center!”. Era ultrajante, às vezes era doído, mas éramos orientados, em casos como esse, a dizer apenas: “Por falta de comunicação encerro a ligação.”, como um robô pré-programado que não tem emoções e só diz o que está no script. Se eu não usasse o script, perderia pontos na monitoria – uma espécie de avaliação de atendimento, feita três vezes por mês – , receberia um longo feedback do meu supervisor e entraria para o hall dos funcionários problemáticos. É claro que eu entrei várias vezes para o hall dos funcionários problemáticos.

O sistema lançava uma ligação atrás da outra. Eu encerrava um contato com um cliente furioso e, em uma fração de segundos outro cliente furioso já estava na linha. Em um dia de trabalho atendíamos em média 100 ligações. Eu tinha a impressão de estar estancando uma sangria interminável. Nunca tinha fim. E enquanto falava o “Alô, bom dia!” ao cliente, eu já tinha que estar puxando as informações pessoais dele em 8 diferentes telas pretas, acionadas por teclas de atalho que eu quase sempre confundia, pois eram muitas. Se eu bobeasse por um segundo, não teria as informações para confirmar com o cliente, ele acharia estranho e desligaria na minha cara. E se o cliente desligasse na minha cara, era uma chance desperdiçada de fazer um acordo de pagamento e bater a minha meta. Ah, a meta! Uma lousa pregada à parede da operação informava todos os dias qual era a meta de acordos de pagamento. A meta era praticamente inalcançável, mas a supervisora, cheia de frases motivacionais tiradas do Google, tentava nos convencer de que, se nos esforçássemos, conseguiríamos. Se as frases motivacionais não funcionassem, ela pegava uma panela ou qualquer objeto que provocasse um barulho ensurdecedor e saía gritando pelos corredores: “Vamos gente! Falta pouco! Vai que dá! Vai que dá!”. Isso tudo acontecia enquanto estávamos em atendimento. Certo dia a algazarra provocada pela supervisora era tanta que o cliente me perguntou, “Você tá ligando do presídio?”, e eu respondi; “De um lugar pior!”.

Tínhamos direito a três pausas diárias no trabalho, uma de vinte minutos para comer e duas de dez minutos para ir ao banheiro. Em tese, a pausa de vinte minutos serviria para que os funcionários aliviassem um pouco o stress provocado pela rotina da operação, mas na prática não era isso o que acontecia. O Call Center em que eu trabalhava tinha uma grande praça de alimentação e um restaurante cheio de coisas que o nosso salário e o nosso vale-alimentação restrito não poderiam pagar, então quase todo mundo levava uma marmita de casa e deixava em uma geladeira que exalava um odor insuportável de comida estragada. No momento da pausa, saíamos correndo da operação, pois a praça de alimentação ficava distante, pegávamos a comida na geladeira e entrávamos em uma longa fila para esquentar a comida no microondas. Quando conseguíamos esquentar a comida, a engolíamos com pressa, lavávamos os recipientes em uma pia quase sempre congestionada, corríamos para o banheiro para fazer as necessidades fisiológicas, afinal a última pausa de dez minutos só poderia acontecer uma hora depois da pausa de 20, e voltávamos para operação. Se usássemos cinco minutos a mais de pausa, ao chegar à operação o supervisor já nos esperava para questionar o motivo do estouro do tempo. Certa vez estourei 10 minutos a minha pausa de 20, pois tinha demorado demais no banheiro. Ao ser questionado, na frente de todos os meus colegas, o motivo do atraso, tive que dizer, “Estou com diarreia. Da próxima vez, venho trabalhar usando uma fralda geriátrica!”.

Depois de trabalhar na equipe de cobrança, trabalhei na equipe de reversão. O trabalho consistia em tentar convencer clientes insatisfeitos a desistirem de cancelar o contrato com a empresa. O fato é que tínhamos uma meta muito agressiva para bater todos os dias e nem a oferta de atraentes descontos na mensalidade do cliente faziam ele desistir do cancelamento de contrato, afinal o produto que a empresa oferecia era realmente muito ruim. Então como iríamos bater a meta de clientes revertidos? Omitindo informações e enganando os clientes, obviamente. Você deve ter se chocado agora. Mas me permita explicar como chegamos a esse ponto. O Call Center estimula entre os funcionários um clima de extrema competição. Mensalmente o desempenho dos funcionários é avaliado por meio de um cálculo que engloba a produtividade – a famigerada meta – , a assiduidade e a nota dada ao atendimento. Em Call Centers que prestam serviço a uma empresa jovem no mercado, como o que eu trabalhava, não importa muito a qualidade no atendimento, eles querem mesmo é que a empresa não perca clientes. Então, se eu conseguia fazer muitos clientes desistirem do cancelamento de contrato, não importavam os meus métodos. Os meus eventuais deslizes no atendimento, como informações omitidas e pequenas mentiras contadas aos clientes, eram quase sempre relevados ou até ignorados.

Uma produtividade alta no Call Center é geralmente premiada com dias de folga, promessas quase sempre não cumpridas de um cargo melhor, ou até brindes simples, como uma caneta, ou um mouse pad, que fazem brilhar os olhos dos mais competitivos, como eu. Então é assim que se estabelece uma cultura de vencedores e fracassados. Ninguém quer estar no time dos fracassados, então os funcionários começam, lentamente, a passar por cima dos seus princípios. Uma mentirinha aqui, outra ali, uma indução de resposta, uma promessa feita ao cliente de algo que a empresa não pode oferecer. Logo você não se importa mais. Chega um momento em que você não enxerga mais aqueles clientes como pessoas, mas como números. O cliente é só uma adição na meta do dia. Se o cliente ameaça tomar o seu tempo relatando sua história de vida triste, você o transfere automaticamente para o setor de reclamações. Esse não quer cancelar o contrato, só quer um amigo. Como era o mesmo o nome dele? Quem se importa? Próximo!

Eu várias vezes passei por cima dos meus princípios para ganhar uma folga no sábado, um bombom, um cordão de crachá, uma caneta, um abraço da supervisora – Sim, isso aconteceu – . Até que um dia caiu para mim a ligação de uma senhora de bastante idade, aposentada, uma pessoa muito simples, que tinha adquirido o produto da empresa por meio de muitas promessas falsas feitas pelo vendedor. O produto era muito ruim e ela logo percebeu isso, então ligou pedindo o cancelamento, mas a pessoa que a atendeu fez mais um monte de promessas falsas, e ela acreditou. Quando percebeu que tinha sido enganada outra vez, ela ligou novamente para cancelar o produto, mas a pessoa que a atendeu registrou no sistema que ela tinha desistido do cancelamento – fraudes no sistema são muito comuns nesse setor – . Então ela ligou de novo para cancelar o contrato, já cansada e se sentindo muito enganada, e eu a atendi. Ouvi a sua história sem muita paciência e já me preparava para lançar a minha argumentação para fazê-la desistir do cancelamento – Eu era ótimo na argumentação – , mas aí ela falou alguma coisa, deixando escapar um leve sotaque do interior de São Paulo, e eu imediatamente me lembrei da minha mãe, das minhas tias, de tanta gente simples que eu conheço. Olhei para a caneta que a supervisora agitava para o alto, como se fosse uma imensa barra de ouro, e caí em mim. Eu estava vendendo meus princípios por uma caneta, pela ilusão de ter o meu trabalho reconhecido, pela ilusão de um cargo melhor dentro da empresa, para me sentir um vencedor, para estar entre o espertos; ou seja, por nada.

É claro que empatia e personalidade, características das quais me orgulho, não são bem aceitas no Call Center e eu logo despenquei do time dos vencedores para o time dos fracassados. E não foi fácil. A insatisfação e a falta de perspectivas ficaram latentes. E eu não era o único. A insatisfação em um call center é tão generalizada que, certa vez, a empresa fez um comunicado, informando que tinha feito um caríssimo trabalho para desentupir a rede de esgoto do prédio, e pedindo encarecidamente que os funcionários não jogassem mais papel no vaso sanitário. E no mesmo dia foram espalhados inúmeros cartazes por todos os lados, dizendo, “NÃO JOGUE PAPEL NO VASO SANITÁRIO!”. Um mês se passou e a rede de esgoto entupiu novamente e os profissionais responsáveis pela rede de esgoto foram mais uma vez acionados. Desta vez não era apenas papel higiênico que obstruía o escoamento da água dos vasos sanitários. Foram encontradas no encanamento do prédio uma infinidade de coisas, desde bitucas de cigarro a crachás da empresa, roupas íntimas, meias e até um aparelho celular. Eu entendi aquilo como um recado, por mais que se queira transformar pessoas em robôs, pessoas ainda são pessoas, e elas se vingam.

Eu obviamente fui expulso do Call Center porque definitivamente não me encaixava na proposta. Mas da experiência fica o entendimento de que os meus princípios e a minha essência me fazem especial, e, por isso eu devo preservá-los acima de qualquer coisa. E fica também a minha empatia por esses profissionais de tão má fama que estão expostos a um ambiente muitas vezes tóxico, propenso a abusos psicológicos, e altamente estressante.

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