António Damásio levou muito tempo para decidir a área que mais lhe traria conhecimento sobre aquilo que motiva suas pesquisas: os grandes questionamentos humanos.
Passou pela engenharia, pelo cinema, literatura e filosofia, criando um trabalho incomparável em sua complementaridade. Sua decisão final ficou com a neurociência que, aliada à sua trajetória de vida e sua forma de pensar, criam um trabalho símbolo da complexidade do cérebro humano.
No seu mais recente livro, A Estranha Ordem das Coisas, Damásio segue um grande defensor das humanidades como formadora de homens e cientistas. Também, mantém sua tese sobre os sentimentos como criadores de consciência e como motores da ciência.
A Estranha Ordem das Coisas acaba de chegar ao Brasil (Companhia das Letras) e trata da importância da dor, do sofrimento ou do prazer antecipado. “Este livro é uma continuação de O Erro de Descartes, 22 anos mais tarde. Em O Erro de Descartes havia uma série de direções que apontavam para este novo livro, mas não tinha dados para o suportar”, explicou Damásio, referindo-se ao famoso livro que, no final da década de 90, demonstrou como a ausência de emoções pode prejudicar a racionalidade. Conheça mais o trabalho deste célebre cientista na entrevista abaixo, concedida ao Público:
Começa este livro, que vem na continuidade dos anteriores, esclarecendo o que chama de uma “ideia simples”, “como usamos os sentimentos para construir a nossa personalidade”. Peço-lhe que descreva o protagonista de A Estranha Ordem das Coisas. Seriam os sentimentos?
Parte dos sentimentos que temos como experiência têm a ver com as coisas mais valiosas da nossa vida; com todas as coisas sobre as quais podemos ter um valor, as que verdadeiramente contam: vida, doença, dor, sofrimento, morte, desejo, amor, cuidado com o outros. E, ao mesmo tempo, crimes, medos, raivas, ódios, que têm a ver com o contrário das boas coisas da vida e que podem levar à perda da vida, e, se não à perda da vida, ao sofrimento.
Praticamente todas as coisas que governam ou desgovernam a nossa vida são normalmente transmitidas por um valor de bom ou mau; de agradável ou desagradável, de recompensa ou punição. São essas que constituem o grande personagem dos sentimentos.
Os sentimentos são representações do estado da nossa vida, mas representações qualificadas. Um dos problemas que mais me inquietam é essa impossibilidade que as pessoas têm tido de perceber que a inteligência – ou a nossa mente – vai só até certo ponto e a partir daí tem de ter uma qualificação. Essa qualificação aparece em termos de agradável ou desagradável, de bom ou de mau, e é isso que faz a grande distinção entre a inteligência humana no sentido mais completo e a mente humana. À inteligência artificial, por exemplo, falta isso.
Infelizmente, as pessoas não têm se dado conta. Sou um adepto de inteligência artificial e tudo o que esse campo de tecnologia e de ciência nos tem trazido, mas é pena que poucas pessoas dentro desse mundo tenham compreendido que a inteligência artificial tal como é compreendida é uma pálida ideia daquilo que é a inteligência humana no seu real.
Ou seja, o humano, muito por via dos sentimentos, não pode ser replicado artificialmente.
Com certeza! Há uma grande diferença entre simulação e duplicação. O que a inteligência artificial faz, e muito bem, é uma simulação, e com capacidades extraordinárias, muito superiores àquelas que temos.
A capacidade de inteligência no sentido mais direto e algorítmico que temos hoje em dia em matéria de memória, de estratégias de raciocínio é extraordinária. O que faltam são essas outras qualidades que temos na nossa inteligência e que são absolutamente necessárias e extremamente realistas, porque têm a ver com aquilo que a vida é. Enquanto a vida concebida no sentido da inteligência artificial não tem nada a ver com aquilo que a vida é. A vida é outra coisa.
E o que é a vida?
A vida é uma coisa venerável, confusa, efusiva. A grande arte nos dá isso e a grande literatura dá isso extraordinariamente. Quando não se inclui esse componente de confusão, efusividade, aquilo que pode ser qualificável de bom ou de mau, perde-se uma grande parte do que é a vida.
Por isso, e para acrescentar uma nota à sua pergunta anterior, os sentimentos como personagem são as representações, aquilo que está na nossa experiência mental quando estamos vivendo uma vida real. E ao mesmo tempo uma forma de nos alertarem para aquilo que está correndo bem ou mal no sentido mais amplo do termo: a vida dentro de um organismo.
Um organismo vivo, que tem bons momentos e maus momentos, que tem todas as variações e flutuações que vêm do seu metabolismo e que, porque tem mente e tem consciência – que é uma coisa que nós temos e as bactérias não – vai poder ter acesso a esse relato daquilo que está correndo bem ou mal.
No livro, fala da consciência da morte como definidor dessa humanidade. A consciência da finitude é, desse modo, formadora não apenas de uma maneira de estar socialmente, como também criadora de uma linguagem. Como é que se transpõe esse saber da morte, muito vezes olhado como transcendência, para a ciência e muito concretamente para a biologia?
Tem sido difícil tratar essa questão. Uma das grandes barreiras é que a ciência, com a sua natural preocupação com a objetividade, teve enorme dificuldade em aceitar coisas que parecem extremamente subjetivas e confusas, com muitas variações, que é difícil de agarrar no sentido mais objetivo do termo. O fato de que os sentimentos são naturalmente subjetivos.
Isso tem sido matéria dos seus livros.
Sim, ando há 20 anos explicando que sentimentos não são emoções. Mas é extraordinária a resistência. As coisas espantosas que dizem… falam de hearts and minds! Esperem um pouco: hearts and minds? O coração é a emoção, mas querem mesmo dizer coração? E querem mesmo dizer mente sem coração? As confusões são extraordinárias.
Mas, talvez o ponto mais importante é que as emoções são públicas. Quando está contente e se ri, ou quando está triste, quando está irritada tudo isso aparece na sua máscara. Aparece no rosto e no corpo. Quando se sente irritada ou triste ou alegre isso aparece unicamente em si. Você é a única pessoa que tem acesso a essa informação no sentido real. É uma experiência privada.
Você pode simular a representação pública, mas essa distinção explica em grande parte porque é que as pessoas estão muito mais confortáveis quando falam de emoção: porque é público, porque é observável, enquanto os sentimentos têm de ser observáveis por dentro.
Mas não estão de forma alguma fora do campo da ciência. É possível a cada um de nós fazer as observações, fazer o resumo dessas observações, que é um campo científico e filosófico a que se chama fenomenologia. Portanto, temos a possibilidade de fazer as nossas próprias observações, partilhá-las com os outros, fazer comparações e fazer descrições o mais completas possível. Não há qualquer limitação do ponto de vista científico. Não há limitação da objetividade com que se pode estudar a subjetividade. E é isso que as pessoas não compreendem.
Sintetizando, fala de sentimentos e consciência, de emoções, de sensações.
Três coisas diferentes. Sensação é o que permite detectar a presença de um estímulo – e que as bactérias e as plantas também têm – e que gera uma resposta. Depois há certas respostas mais complexas. Em organismos simples, se tocar na criatura ela se retrai. É a mesma reação que terá se alguém a assustar, uma reação emocional.
Há reações conservadas ao longo de bilhões de anos e que são emocionais, reações de movimento. O centro da palavra emotion é motion. Se alguém lhe perguntar a diferença entre emoção e sentimento agarre-se à palavra motion; o movimento está do lado das emoções e, se está do lado das emoções, está do lado daquilo que é visível para os outros.
Sensação, no seu básico, não tem nada a ver com a emoção propriamente dita. A emoção é uma reposta complexa de movimento em relação a um estímulo que foi sentido e depois há o sentimento, que é a experiência mental daquilo que se passou no organismo quando houve sensação e emoção.
São três graus. Um é extremamente simples, outro já é mais complexo, em que há uma resposta, e ainda um outro em que há o apreender consciente e mental daquilo que foi a resposta e que se passou no organismo. São mundos diferentes.
Podemos dizer que estamos no campo da subjetividade. É isso que o estimula do ponto de vista científico?
Sim, é extremamente importante. O que eu quero é dar objetividade científica àquilo que é uma coisa subjetiva, que é, no fundo, a definição da consciência.
Grande parte do problema da consciência é o problema da subjetividade. É por isso, aliás, que é tão extraordinariamente difícil de perceber; é por isso que as pessoas têm enormes conflitos e desacordos sobre o que é a consciência.
Cada vez mais estou absolutamente convencido que não é possível distinguir tecnicamente sentimento e consciência. O sentimento, muito possivelmente, foi o princípio da consciência do ponto de vista evolutivo. O sentimento com a sua natural subjetividade e tudo isso se estendeu a outras subjetividades: subjetividade do que está no exterior – eu tenho subjetividade em relação a si neste momento, mas também tenho subjetividade em relação ao meu interior.
Por exemplo, sei neste momento que estou um bocado cansado, fiz uma viagem de 15 horas e estou fora da hora em que deveria estar. Tenho essa subjetividade. E tenho a subjetividade em relação a si, às paredes desta sala, ao que estou a ouvir atrás de mim. O que temos é uma grande possibilidade, muito rica, de juntar subjetividades dentro da nossa mente. A nossa mente é toda feita de subjetividades.
Esse é também o campo da arte.
Sim. E eu sou um apaixonado pela literatura. A literatura é o modo mais rico, de todos os que temos, de entrar na subjetividade de outra pessoa e de nos fazer perceber o que pode ser a outra pessoa, muito mais do que o cinema, do que o teatro, porque a situação em que estamos lendo é… Devemos estar sozinhos e com um texto que podemos parar a qualquer altura. Pode ler um parágrafo e parar e pensar e retomar e reler. Não pode fazer isso com um filme a não ser que estrague tudo. Tecnicamente pode, mas ninguém vê um filme dessa maneira. A parte da experiência de ver um filme é vê-lo na continuidade de um determinado período de tempo.
Como cientista, a literatura pode ser útil – pese a ambiguidade da palavra – neste estudo?
Absolutamente. Tudo é útil, umas coisas mais do que outras, mas a literatura é extraordinariamente útil porque é uma entrada muito rica na mente, uma entrada que utiliza a vida subjectiva, os sentimentos. É muito curioso, quando se olha para as humanidades de uma forma geral, e para as artes vê-se como têm sido laboratórios de estudos.
As pessoas não perceberam ainda que uma boa parte do que se passa no mundo da grande arte é uma espécie de prefácio para o estudo científico dos seres humanos. Quando não havia uma estrutura laboratorial científica, as pessoas já estavam a…
Elaborar?
A elaborar. E a literatura tem sido um grande contributo. Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre respondo: na minha área, é Shakespeare.
Está tudo lá?
Praticamente tudo. Pelo menos esboçado. O que se tem é de desenvolver. Quer sejam as peças históricas, as tragédias ou as comédias, a própria poesia.
Praticamente tudo aquilo que interessa, todos os grandes temas, estão lá. Entre as milhares de coisas que gostaria de escrever – se calhar não terei tempo –, seria fazer qualquer coisa com a neurociência ou a neurobiologia cognitiva vistas através do Hamlet e do Otelo.
O Hamlet é praticamente suficiente. É tão rico e está tão cheio daquilo que conta… E talvez meter o Falstaff pelo meio para ficar mais completo.
A resposta é que há essa resistência, mas não da parte de todos. Há também quem adote, quem veja o valor, o interesse, muitas vezes talvez porque, na sua própria vida pessoal, percebem que é importante e acabam por ser seduzidos por essas possibilidades.
Se as pessoas trabalham em áreas muito microscópicas daquilo que é a ciência, mesmo que seja ciência humana, é mais difícil fazer a passagem direta. E não é uma coisa que se deva sequer criticar. É perfeitamente compreensível.
Mas certas pessoas da minha geração, e até de algumas gerações a seguir, têm um enorme apreço pelas humanidades dentro da ciência. Não se devem fazer generalizações, mas é verdade que tem havido uma certa resistência e também alguma resistência militante. Em certas áreas, quando pessoas das humanidades olham para o contributo da teoria da evolução ou da genética… Há tantos erros, tanta complicação.
Por exemplo, a forma como parte desses conhecimentos levou a teorias sobre os seres humanos, da eugenia até aos extremos piores da exploração racista. Claro que há razões para as pessoas terem tido durante algum tempo uma certa rejeição e depois muitas vezes também têm o pavor do reducionismo. É um grande pavor também da parte das humanidades e, portanto, rejeitam que a ciência possa trazer alguma coisa de tão importante como aquilo que as humanidades têm trazido em matéria de compreender o que são os seres humanos.
Neste livro levanta duas ou três vezes esse problema…
Porque eu não tenho qualquer espécie de desejo de reduzir aquilo que são os seres humanos no seu mais sublime à ciência abstrata. Pelo contrário.
Aquilo que acho, e cada vez acho mais e neste livro é a primeira vez que percebo, é isso: quando se ligam sentimentos à cultura, por um lado, e sentimentos à homeostasia e aos princípios da vida, o que estamos a fazer é a enriquecer a ligação entre a cultura e a vida. Ao contrário de reduzir, estamos a aumentar, a fazer com que esse fio seja mais visível.
A palavra homeostasia cruza todo o livro. Ela é completamente definidora do que é o humano?
É completamente definidora do que é um ser vivo. O ser humano precisa ter não só os imperativos da homeostasia nos seus aspectos mais complexos, mas também desenvolvimentos que vêm com a multicelularidade, o aparecimento dos sistemas nervosos e depois o extraordinário desenvolvimento da capacidade dos sentimentos, consciência de mente com imagens…
Pode-se dizer que os sentimentos são fundadores da ciência?
Possivelmente são. São pelo menos motivadores. Neste livro há três papeis que dou aos sentimentos, ou ao afeto em geral. Primeiro, motivadores, depois monitores e depois negociadores. Os sentimentos intervêm nesses três pontos. São coisas diferentes.
Uma é motivar, outra é a monitorização e a outra é a negociação de quando as coisas correm mal ou bem de mais. Há constantemente ajustes. Há pessoas que, perante dois advogados a discutirem um contrato, ou dois políticos a discutirem um tratado, são capazes de pensar que isso está a acontecer num plano puramente intelectual; não está. Acontece num plano intelectual e acontece com toda a miríade de alterações que têm a ver com a forma como uma das pessoas apresenta o argumento e como a outra o recebe.
Tudo isso é uma negociação que está a ser feita não só num plano de conhecimento e razão, coisas que se podem dizer objetivas e frias, mas também nesse outro plano que tem a ver com a forma como a negociação está a correr do ponto de vista afetivo. Essa é a realidade.
Tem o exemplo espetacular do que se tem passado nestes últimos dois anos com movimentos de populismo, de racismo em toda a parte. Muitas vezes, a forma como esses problemas são apresentados gera reações de zanga e protesto puramente emocionais.
Uma das coisas extraordinariamente curiosas é que quando as pessoas falam de emoções falam quase sempre do ponto de vista negativo das emoções. Muitas vezes acham que há o lado objetivo, o do bom raciocínio, e depois as emoções, más, que tornam as coisas irracionais.
É um disparate completo, porque é limitar o âmbito das emoções ao negativo. Há emoções muito positivas; ter compaixão, gratidão, desejo de ajudar, cooperar. O amor! O desejo pelo amante, o amor pela criança que se está criando.
É desse preconceito que vem a distinção entre inteligência e inteligência emocional?
Sim. As emoções muitas vezes ajudam a tomar a decisão e muitas vezes trazem o conhecimento, o discernimento, o destilar de uma série de conhecimentos que temos, uma vez que foram aplicados e qualificados.
A intuição é uma maneira de fazer linha reta para a solução do problema sem andar por todas as fases intermédias. Essa intuição vem de uma forma emocional. Tudo isso tem imensa graça.
As pessoas que descobriram o big data falam de como um grupo de computadores pode ler uma enorme quantidade de dados e tirar uma conclusão extremamente nova, verificando que aquilo é o que se deve fazer. Mas isso que o computador está fazendo é aquilo que a intuição humana faz há milhões de anos.
O nosso cérebro é um big data system que tem imenso conhecimento do que é a nossa vida interior fisiológica e sobre o que é, e tem sido, a nossa vida em geral. E esse big data system está constantemente a dar-nos um dado institucional que é extremamente importante para a nossa vida. Tudo isso vem do lado das emoções e faz parte do que se poderia chamar inteligência emocional. Não uso o nome porque não acho que haja uma inteligência emocional e uma não emocional. Há inteligência.
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