Por Marcello Rollemberg / Jornal da USP
“A vida é curta, a arte é longa”, popularizou o poeta romano Sêneca, em um aforismo que venceu os séculos. Ou seja, a arte permanece mesmo quando seu autor já tiver cruzado a fronteira entre o terreno e o etéreo. O sonho de todos, contudo, é que a arte – cultura, consciência, criação, dê-se o nome que quiser – acompanhe pari passu o nosso caminhar, com a existência se alongando ao ponto de fazer com que as linhas paralelas que acompanham criação e vida se toquem, mais do que se tangenciem.
É uma quimera? Para ainda alguns poucos, não, com a arte perene se confundindo com uma vida longa e criativa. Para ficarmos em apenas dois exemplos: o cineasta português Manoel de Oliveira viveu até os 107 anos, ativíssimo e trabalhando até o fim em três projetos inconclusos. E o arquiteto Oscar Niemeyer trabalhou em seu escritório quase até o fim, às vésperas de completar 105 anos.
A esses, some-se agora talvez um paradigma dessa longevidade aliada à extrema lucidez nesses tempos estranhos: o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, criador da teoria do “pensamento complexo”, que neste dia 8 de julho completou um século de vida.
E como ele está comemorando essa marca centenária? Lançando mais um livro, que se soma aos 70 que ele publicou no decorrer de sua prolífica vida. Em Leçons d’un siècle de vie (Lições de um século de vida, em tradução literal), o pensador da transdisciplinaridade recorda etapas cruciais de sua vida, destaca os erros porventura cometidos, a dificuldade de compreender o presente e a necessidade do exercício da autocrítica para a vida em sociedade. Um longo e essencial inventário de cicatrizes e realizações.
Segundo Morin, como destaca o site da Radio France International (RFI), uma das grandes lições de sua vida foi deixar de acreditar na sustentabilidade do presente, na continuidade e na previsibilidade do futuro. “A história humana é relativamente inteligível a posteriori, mas sempre imprevisível a priori”, escreve ele em seu novo livro. E diante dessa imprevisibilidade do presente, o pensador destaca, é fácil cometer erros.
Ele relaciona pelo menos dois que teria cometido ao longo de sua trajetória política e intelectual: seu pacifismo antes da Segunda Guerra Mundial, que o impediu de enxergar a verdadeira natureza do nazismo – ele depois consertaria esse equívoco, sendo parte atuante da Resistência Francesa, onde adotou o codinome “Morin”, que após a guerra o acompanharia para sempre, deixando de lado o sobrenome familiar judeu sefardita Nahoum. O outro foi sua crença no sistema soviético, mais tarde abandonada. “Minha estadia de seis anos no universo stalinista me educou sobre os poderes da ilusão, do erro e da mentira história”, relembra ele em Leçons d’un siècle de vie.
Mas, entre erros e acertos, na tabela de somas e débitos, Edgar Morin acertou muito mais. A conta final é totalmente favorável a ele – e sua obra e sua história pessoal e intelectual estão aí para provar. Uma obra, frise-se, monumental, não só na quantidade de livros publicados, mas principalmente – claro – na qualidade e na importância das ideias que ele estabeleceu.
“É impossível dar conta da importância de suas contribuições científicas, filosóficas, antropológicas, sociológicas, pedagógicas, mas, sobretudo, epistemológicas”, escreveu em artigo recente no jornal Valor Econômico o professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e colunista da Rádio USP José Eli da Veiga. Em seu texto, Veiga faz referência aos seis volumes de O Método, talvez a obra maior de Morin, que trata “da natureza da vida, das ideias, da humanidade e da ética”. Aceitando a tortuosidade em se vencer as “difíceis 2.500 paginas” dos volumes, o professor aponta um outro caminho para iniciantes dispostos a “mergulhos mais profundos”: Meu Caminho, publicado pela Bertrand Brasil em 2010. “Não há melhor introdução à monumental obra de Morin do que estas treze entrevistas, concedidas em 2008, à jornalista Djénane Tager.
Em linguagem coloquial, estão realçadas suas contribuições sociológicas, os estudos de física e biologia que o levaram à teoria da complexidade, a justificativa da escolha do termo ‘método’, sua maneira de analisar o estado do mundo”, assinala José Eli da Veiga em seu artigo.
Por tantas contribuições fundamentais em vários campos do conhecimento, Edgar Morin fez – e ainda faz – da transdisciplinaridade seu campo fértil de ação e reflexão. Não é exagero chamá-lo de principal pensador ocidental contemporâneo. No campo da educação, por exemplo, ele foi um dos primeiros a sugerir uma reforma de paradigmas, questionando o ensino meramente disciplinar e pautado em conteúdos técnicos. Para ele, o que importa é aplicar o conhecimento de maneira crítica.
Em entrevista publicada no jornal português O Público, em 2009, por exemplo, ele defendeu uma “reforma radical” no ensino para acabar com o que ele chamou de “hiperespecialização”.
“Apenas com esta mudança de paradigmas no ensino as pessoas serão capazes de compreender os problemas fundamentais da humanidade, cada vez mais complexos e globais”, afirmou o autor de Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, que criticou o fato de nas escolas e universidades não existir “um ensino sobre o próprio saber”, sobre “os enganos, ilusões e erros que partem do próprio conhecimento”. Para Morin, o ideal seria criar “cursos de conhecimento sobre o próprio conhecimento”.
“Conhecer apenas fragmentos desagregados da realidade faz de nós cegos e impede-nos de enfrentar e compreender problemas fundamentais do nosso mundo enquanto humanos e cidadãos, e isto é uma ameaça à nossa sobrevivência”, avaliou ele, com uma visão de humanismo que está difícil de se encontrar nos dias de hoje.
Em outra entrevista, esta para o programa Milênio, da GloboNews, Edgar Morin deu mais pistas da sua forma de pensar o mundo sensível e esclareceu, para quem ainda não tinha compreendido, sua teoria do pensamento complexo. “A tragédia do nosso sistema de conhecimento atual é que ele compartilha tanto os conhecimentos que a gente não consegue se fazer essas perguntas. Se perguntarmos ‘o que é ser humano?’, não teremos respostas, porque as diferentes respostas estão dispersas”, afirmou ele. “E, no fundo, é isso que chamo de pensamento complexo, um pensamento que reúne conhecimentos separados. O objetivo do ensino deve ser ensinar a viver. Viver não é só se adaptar ao mundo moderno. Viver quer dizer como, efetivamente, não somente tratar questões essenciais, mas como viver na nossa civilização, como viver na sociedade de consumo”, acrescentou o pensador na entrevista – para também apontar seu olhar para um outro problema dos tempos atuais: informação demais, conhecimento de menos.
“É preciso ensinar não só a utilizar a internet, mas a conhecer o mundo da internet. É preciso ensinar a saber como é selecionada a informação na mídia, pois a informação sempre passa por uma seleção”, afirmou ele. “Informação não é conhecimento. Conhecimento é a organização das informações”, esclareceu Morin, que ainda mantém uma conta bastante ativa no Twitter – “É uma forma de me expressar, de expressar ideias que me ocorrem, reações que tenho frente a acontecimentos e de uma forma muito concentrada”, revelou ele à Folha de S. Paulo em 2019.
Entre tantas áreas pelas quais Morin e suas complexidades trafegaram, talvez a da comunicação seja realmente aquela em que seu olhar tenha se debruçado com uma atenção mais específica. Já em 1960, ele fundou na École de Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris – ao lado de Roland Barthes e Georges Friedmann –, o Centro de Estudos de Comunicação de Massa, com a intenção de adotar uma abordagem transdisciplinar do tema. E suas teorias, nesse campo, germinaram – no Brasil, inclusive.
“Edgar Morin sempre teve uma relação particular com a comunicação, desde os seus primeiros escritos na década de 1960 sobre a cultura de massa e o cinema, até os influentes escritos sobre o imaginário. Mas é como pensador e crítico da ciência monodisciplinar e fragmentada que atinge uma repercussão que só fez crescer junto aos estudos de comunicação no Brasil”, afirmou ao Jornal da USP a professora sênior da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Maria Immacolata Vassallo de Lopes.
“Tem havido uma singular correspondência da sua teoria da complexidade com o pensamento transdisciplinar, que é a marca da comunicação em torno dos princípios da dialogia, das interações e das interligações. A possibilidade de que a comunicação aproveite positivamente as reflexões de Morin fazem da ECA um centro irradiador de suas obras, não somente porque quebram e abrem as disciplinas, mas também porque as transbordam, estabelecendo relações cada vez mais densas entre as ciências exatas e ciências sociais e humanidades”, atesta a professora.
É por este caminho, apontando “transbordamentos” e interconexões no pensamento de Edgar Morin no campo das ciências humanas – e da comunicação, como extensão –, que acompanha a também professora sênior da ECA Mayra Rodrigues Gomes. “Ao entender a comunicação como processo que realiza o trânsito interpessoal de informações, ideias, opiniões, não podemos dissociá-la das instâncias que ela costura. Ela invoca necessariamente saberes de diversas naturezas que brotam em diferentes campos do conhecimento, incluindo técnicas e métodos particulares”, contextualiza a professora.
“Edgar Morin trouxe há várias décadas a concepção do ‘paradigma da complexidade’, com a qual criou um instrumental de trabalho que leva em conta a natureza interdisciplinar da comunicação, a complexidade das sociedades contemporâneas, a diluição das fictícias oposições entre razão e mito, ciência e arte, real e imaginário.”
Mas diante de tantas teorias, de tantos olhares trans e interdisciplinares – e com tantos anos de vida e sabedoria –, como será que Edgar Morin se definiria? Falou-se lá no começo deste texto que ele é sociólogo e filósofo. Seria reducionismo? “A melhor definição seria não ter definição. De se bastar. A palavra ‘filósofo’ talvez me conviesse bem, mas hoje a filosofia, no geral, se fechou em si mesma e a minha filosofia é uma filosofia que observa o mundo, os acontecimentos. Sou muito marginal, quer dizer, sou marginal em todas essas áreas. Então, sou aquele que querem que eu seja.”
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