Por Haroldo Caetano
Em Física fala-se no horizonte de eventos, um campo situado ao redor do buraco negro e que forma uma espécie de armadilha de pura gravitação, o que impede todo corpo e todo raio de luz de escapar do seu interior. O buraco negro, com seu irresistível poder de atração, faz com que o tempo pare e o espaço deixe de existir. Nesse campo teórico ocorre um paradoxo no qual as leis da Física não podem ser aplicadas uma vez que resultam em absurdos matemáticos.[1]
Por evidente, não pretendo enveredar aqui, em face da absoluta falta de domínio do assunto, pelos meandros das teorias que se propõem a explanar sobre os buracos negros no cosmos. Busco naquelas figuras instigantes apenas o argumento, baseado na compreensão popular acerca dos conceitos astrofísicos, para a construção de uma metáfora que talvez seja útil na explicação do que atualmente se passa em nosso meio jurídico.
No Direito brasileiro também vem acontecendo algo que se identifica com o fenômeno do buraco negro, o que talvez seja até mais facilmente demonstrável do que na Física, ao menos para quem, como eu, pouco ou quase nada sabe desse ramo do conhecimento. Se as leis da Física não se aplicam no horizonte de eventos do buraco negro, também as leis produzidas pelo homem não se aplicam diante do buraco negro jurídico. Enquanto, no cosmos, o buraco negro traz para si de forma irresistível tudo o que ingressa no seu horizonte de eventos, o buraco negro jurídico se apresenta como uma espécie de armadilha autoritária que também atrai tudo ao seu redor. Entramos no horizonte de eventos do buraco negro jurídico no instante em que as garantias constitucionais dos indivíduos têm sua vigência negada, assim como quando acontece a relativização da legalidade no funcionamento das instituições do sistema de justiça.
Narcélio de Queirós já anunciava na década de 1960 a necessidade irrenunciável de se produzir, sempre, soluções jurídicas para os problemas jurídicos[2]. Para o eminente jurista do Estado da Guanabara, mesmo nas discussões mais difíceis e complexas, a ordem normativa e os princípios gerais do direito deveriam compor o norte orientador para a solução dos problemas trazidos ao conhecimento do juiz. No buraco negro que agora orbitamos, problemas jurídicos já não exigem soluções jurídicas, mas permitem, sim, soluções arbitrárias e juízos de exceção. A legalidade passa distante.
Texto trazido do site JUSTIFICANDO
Problemas que não poderiam nem mesmo ser classificados como complexos, tampouco a exigir grandes esforços de interpretação por parte do jurista, seja diante da lei ou mesmo da Constituição, já admitem soluções estranhas e questionáveis quanto ao seu conteúdo jurídico, ou até opostas à própria ordem normativa. É o caso da relativização de princípios fundamentais pelo próprio Supremo Tribunal Federal, órgão que deveria ser o responsável pela preservação do texto constitucional, como aconteceu, por exemplo, na dispensa do trânsito em julgado da sentença para a execução da pena criminal e na restrição ao direito de greve dos servidores públicos, em flagrante desobediência da letra expressa na Constituição no primeiro caso e, no segundo, na inovação de uma regra restritiva ainda não positivada, ao impor o obrigatório desconto salarial relativo aos dias parados.
Mas não são apenas esses os eventos no horizonte a revelar a dimensão do buraco negro jurídico em que entramos. Ele também se manifesta na forma de conduções coercitivas ilegais, no juízo de exceção legitimado em jurisprudência, assim como em decisões proibitivas do direito de manifestações públicas ou na falta de atuação das instituições no sentido de garantir o exercício de tal direito, na falta de controle nas atividades das polícias, na divulgação ilegal de interceptações telefônicas, como também no ativismo judicial que não raro se sobrepõe à tarefa do legislador. É certo que no campo penal o problema não é algo recente e se expressa, ressalvadas as honrosas exceções, em uma nada sutil conversão do sistema de justiça criminal em mera agência a serviço do punitivismo, cujos efeitos se expressam na quarta maior população carcerária do planeta, composta em grande parte por prisioneiros que sequer tiveram os seus processos instruídos ou condenação definitiva.
O poder de sedução e de atração do buraco negro jurídico faz com que as leis já não tenham validade e passam a soar como absurdos alguns princípios outrora fundamentais como, por exemplo, o devido processo legal, o direito à defesa, o processo acusatório ou até mesmo a imparcialidade do julgador, cujas decisões podem agora fundar-se na opinião pública, esta assumindo o lugar de eventuais provas e das regras legais. Não causa espanto o pedido de um juiz, formalizado a outro juiz de instância superior, para que mantenha preso o “seu” réu. O juiz-parte é reconhecido, sem qualquer questionamento, nas capas das principais revistas semanais, exposto naturalmente como adversário daquele que deverá julgar.
É exatamente aí que boa parte do sistema de justiça brasileiro se encontra, no “horizonte de eventos” do buraco negro autoritário, onde a norma legal dá lugar ao simples exercício do poder por membros do Ministério Público e por juízes, agora identificados como agentes assépticos, tacitamente autorizados a atuar por suas próprias convicções. As leis, materiais ou processuais, não se aplicam no buraco negro jurídico.
Não que isto signifique algum fio de esperança, embora assim talvez possa parecer, mas há algo do fenômeno da Física que não se faz presente no seu equivalente jurídico: no buraco negro do Direito não existe o tal ponto de não-retorno e, a depender das forças em disputa, a legalidade na atuação do sistema de justiça pode vir a ser restaurada no futuro. Vale lembrar também que, juristas ou não, nem todos os brasileiros ingressaram no horizonte de eventos desse buraco negro. Resta saber, contudo, quando ou se a vontade democrática terá força suficiente e condições para superar a atração autoritária em nosso país.
Haroldo Caetano é Doutorando em Psicologia (UFF), Mestre em Direito (UFG). Promotor de Justiça do Estado de Goiás.
[1] Para melhor compreensão do tema: CASTIÑEIRAS, Jorge ; CRISPINO, Luís Carlos Bassalo ; MATSAS, George Emanuel Avraam . Horizonte de Eventos. Scientific American Brasil, São Paulo, SP, v. 29, p. 50-56, 2004.
[2] QUEIRÓS, Narcélio de. Teoria da actio libera in causa e outras teses. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1963, p. 66.
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