Outro dia, estávamos, meu filho e eu, caminhando pela rua da cidade, quando passou um carro tocando uma música em um volume muito, muito alto. Até ele se distanciar bastante de nós, mal conseguíamos conversar. Na hora, meu filho comentou sobre esse pessoal que ouve funk nessa altura e questionou como pode alguém ouvir esse tipo de música. Achei válido discutir com ele essa questão, pois notei que estávamos diante de duas questões diferentes: o carro com uma música em um volume excessivamente alto e o tipo de música que ele tocava.
Os dois casos envolvem questões éticas e virtudes morais, mas por razões diferentes. De acordo com o professor, Clóvis de Barros Filho, “a ética, é a vitória da convivência sobre os interesses singulares, da vontade geral sobre a vontade de cada um, do interesse público sobre os interesses particulares”. Isso significa que o cidadão ético é aquele que, em nome de uma melhor convivência em sociedade, consegue colocar os interesses da maioria das pessoas acima das suas vontades e desejos individuais.
Dessa maneira, ouvir uma música em um volume excessivamente alto, é uma questão ética, já que a pessoa que faz isso coloca seu interesse (ouvir essa música) acima do interesse geral da sociedade, que, de uma maneira geral, não quer ser obrigada a ouvir música nenhuma, mas o mais importante dessa reflexão é percebermos que isso é independente da música. O que argumentei com meu filho é que o problema ali não era o cidadão gostar de ouvir funk, mas sim, o fato de ele não respeitar o espaço público, impondo sua música a todos. Isso significa que se ele estivesse ouvindo rock, pagode ou a nona sinfonia do Beethoven, não faria diferença alguma.
Claro, podemos argumentar que os que ouvem funk costumam ter esse comportamento com mais frequência, associando o estilo musical preferido da pessoa à sua conduta ética. Lidamos, então, com mais uma questão moral muito interessante, que é o preconceito. Toda categorização presume preconceito. Sempre que colocamos um grupo de indivíduos em uma categoria e achamos que isso determina comportamentos estamos sendo preconceituosos. Isso vale para qualquer tipo de categorização: mulheres, gays, negros, pobres, ricos, favelados, etc. Quando tomamos a ação individual de uma pessoa e a extrapolamos para toda a categoria à qual esse indivíduo pertence, estamos sendo preconceituosos.
Comentários como “tinha que ser funkeiro” equivalem a comentários como “tinha que ser mulher”, ou “tinha que ser negro”. E isso fica claro quando comparamos nossa conduta em situações como essa quando quem ouve a música em um volume excessivo tem outro estilo musical. Imagine se eu passasse pela mesma rua ouvindo o Trio Arquiduque no máximo de volume possível. Alguém comentaria algo como: “tinha que ser essa gente que ouve música clássica”? Possivelmente, não; talvez até elogiassem minha ação de levar música erudita aos ouvidos daqueles que não a conhecem.
Mais interessante ainda é quando o “alto e bom som” se torna quase uma virtude, uma maneira de protestar contra a sociedade, mas que é visto com bons olhos, como por exemplo, no caso da música tocada ser um heavy metal. Fui casada com um homem roqueiro que tinha o maior orgulho de seu “super alto-falante”, instalado com todo esmero em seu carro. Era possível ouvi-lo chegando a quadras de distância. Mas, nesse caso, tudo bem, porque o rock já é, em si, um som de protesto, e você quebrar as regras de uma boa convivência em nome disso é tolerável.
Todas essas discussões acima servem para que possamos perceber o quanto as questões que enfrentamos no dia a dia são complexas, possuem diversos pontos de vista, e o quanto nós temos dentro de nós pré-conceitos tão arraigados, que nem sequer notamos mais.
Quando meu filho questiona: como alguém pode ouvir uma música como essa, caímos em mais uma questão importante: a tolerância. O que é tolerância, afinal? Por que é tão difícil conseguirmos tolerar certas diferenças de gostos e condutas? De acordo também com o professor Clóvis, a tolerância é uma virtude moral, já que se baseia em nossa capacidade de lidar com o ódio.
O filósofo holandês, Baruch Spinoza, tinha uma definição de amor que eu gosto muito – a minha preferida, em toda a filosofia. Para Spinoza, temos uma potência, uma energia vital, que oscila durante todos os momentos do dia. Há coisas que aumentam nossa potência, nos tornam seres mais energéticos, gerando o que ele classificou como alegria. Quando sentimos alegria, ou seja, aumento de potência, e conhecemos a causa dessa alegria nós sentimos amor. Então, para Spinoza, amor é o aumento de potência associado a uma causa.
O ódio é o contrário: queda de potência associada a uma causa conhecida. Então, se identifico algo que tem capacidade de reduzir minha potência de agir, de reduzir minha alegria, sinto ódio por essa coisa. É importante ficar claro que esses afetos citados por Spinoza não dependem da nossa vontade, não podem ser controlados pela nossa razão. O aumento e a diminuição da potência são manifestações de nosso corpo e não temos como evitar isso. No entanto, temos controle sobre as nossas ações, ou seja, sobre o que vamos fazer diante desses afetos todos.
Dessa maneira, a tolerância é justamente a capacidade que temos de lidar com o ódio, de aceitar a existência de pessoas/gostos/condutas que sabidamente reduzem nossa potência, que nos geram desconforto, que reduzem nossa alegria. Por isso, a tolerância é uma virtude moral. É necessário que nós ativamente lidemos com o ódio, com o desagrado que condutas e gostos muito diferentes daqueles que nos geram alegria provocam em nós e que aceitemos com respeito a existência dessas condutas e gostos.
Obviamente, não seremos capazes de admirar pessoas que nos geram esse tipo de desconforto. Dessa forma, tenderemos a buscar a convivência mais próxima com aqueles com quem temos mais afinidade, ou seja, aqueles que têm gostos e condutas semelhantes aos nossos. Pensando nas oscilações de afeto de Spinoza, fica bem claro porque a convivência entre pessoas semelhantes é muito mais fácil e prazerosa do que a entre opostos – apesar da crença de que os opostos se atraem e se completam. Se convivo com pessoas que possuem muitos hábitos e condutas que reduzem minha potência, a tendência é que eu perca mais potência do que ganhe nessa relação. Ao contrário, quando encontramos pessoas que se alegram com as mesmas coisas que a gente, a tendência é somarmos alegrias e nos tornarmos mais potentes. Relacionamentos baseados em diferenças exigem uma dose cavalar de tolerância.
No entanto, a vida em sociedade exige que a gente conviva com todo tipo de pessoas. Dessa forma, é extremamente necessário que se exercite a tolerância, que as pessoas consigam compreender que, apesar de determinados gostos e condutas baixarem sua potência, é preciso lidar com esse afeto negativo e respeitar a existência de pessoas que são diferentes de você, evitando ter comportamentos fundamentalistas. Sempre que achamos que somente a nossa ideia é correta, que ela não permite interpretações, e que todos aqueles que discordam dela devem ser ou eliminados ou convertidos, estamos sendo fundamentalistas. O fundamentalismo e a intolerância andam de mãos dadas. É necessário tolerar a existência do diferente, lidar com o afeto negativo e respeitar, em nome de uma melhor convivência em sociedade.
Assim, fica claro que a convivência em sociedade não é tarefa fácil. Temos que estar sempre pensando, avaliando, ponderando, lidando com nossas oscilações de afeto. Também fica claro que a ética presume uma grande participação da razão, do pensamento crítico, da capacidade de fazer ponderações complexas, da capacidade de exercermos o nosso lado humano, ponderando nossos afetos para que a convivência não se torne uma guerra de todos contra todos, mas, ao mesmo tempo, sempre trabalhando em nome de defendermos dentro dessa convivência as nossas bandeiras, os nossos valores, as nossas verdades. É quase um jogo de equilíbrio de pratos, em que estamos sempre diante de situações inéditas e que precisam ser ponderadas caso a caso.
Por fim, lembrei-me de um poema de Mário Quintana, chamado A arte de viver:
“A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver…
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!”
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