Por: Vitor Paiva – do site Hypeness
Quando soube que havia enfim recebido o Prêmio Nobel de Literatura, não só o poeta chileno Pablo Neruda como seu próprio país de origem viviam realidades muito diferentes da que viria a lhes assaltar dois anos depois. Corria o ano de 1971, e aquele a quem Gabriel Gárcia Márquez chamou de “o maior poeta do século 20, em qualquer idioma” quase não acreditou no que chamou de “milagre”, conforme declarou em entrevista diante da notícia. “Enfim parece que sou mesmo agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. Ótimo, vocês sabem que nós, poetas, sempre estamos esperando milagres. E o milagre realizou-se”, afirmou Neruda.
Em seguida, o poeta expôs outra alegria que lhe acometia junto do Nobel: a eleição de Salvador Allende como presidente do Chile e o primeiro socialista a ser eleito democraticamente na América Latina. “O presidente Allende acaba de me felicitar, em nome do governo e do povo chileno”, disse Neruda. Dois anos depois, no fatídico 11 de setembro de 1973, Allende seria derrubado e assassinado pelas tropas de Pinochet, que instauraria uma longa ditadura no país, e doze dias depois do golpe militar, o próprio Neruda viria a falecer, em circunstâncias suspeitas que hoje sugerem também um assassinato.
Mas a poesia e a memória de Neruda, assim como de Allende, permanecem – e se fazem mais necessárias do que nunca, em um mundo tão polarizado, sombrio e perigoso como o que vivemos.
A grandeza de Neruda e a força simbólica de seu Nobel merecem ser lembrados hoje, através da íntegra de seu comovente discurso diante da Academia Sueca ao receber o prêmio.
“Meu discurso será uma longa travessia, uma viagem minha por regiões longínquas e antípodas, não por isso menos semelhantes à paisagem e às solidões do norte. Falo do extremo sul do meu país. Nós, chilenos, nos afastamos tanto até tocar com nossos limites o Pólo Sul, que parecemos a geografia da Suécia, que roça com a sua cabeça o norte nevado do planeta.
Por ali, por aquelas extensões da minha pátria, para onde me levaram acontecimentos já esquecidos, deve-se atravessar, tive que atravessar os Andes, procurando a fronteira do meu país com a Argentina. Grandes bosques cobrem como um túnel as regiões inacessíveis, e, como o nosso caminho era oculto e vedado, aceitávamos somente os sinais mais débeis da orientação. Não havia rastros, não existiam caminhos, e com meus quatro companheiros a cavalo procurávamos em ondulante cavalgada – eliminando os obstáculos de árvores poderosas, impossíveis rios, rochas imensas, desoladas neves, adivinhando quase a rota da minha própria liberdade. Os que me acompanhavam conheciam a orientação, a possibilidade entre as grandes folhagens, mas, para sentirem-se mais seguros montados em seus cavalos, marcavam com seus machados aqui e acolá os troncos das grandes árvores, deixando rastros que pudessem guiá-los no regresso, quando tivessem me deixado só com meu destino.
Cada qual avançava tolhido por aquela solidão sem margens, naquele silêncio verde e branco; as árvores, as grandes trepadeiras, o húmus depositado por centenas de anos, os troncos semiderrubados, que repentinamente tornavam-se outra barreira na nossa marcha. Tudo era ao mesmo tempo uma natureza deslumbrante e secreta e uma crescente ameaça de frio, neve, perseguição. Tudo se misturava; a solidão, o perigo, o silêncio e a urgência da minha missão.
Às vezes, seguíamos um rastro estreitíssimo, deixado talvez por contrabandistas ou delinquentes comuns fugitivos, e ignorávamos se muitos deles tinham perecido, surpreendidos de repente pelas glaciais mãos do inverno, pelas tremendas tormentas de neve que, quando se desencadeiam nos Andes, envolvem o viajante, enterram-no sob sete andares de brancura.
A cada lado do rastro contemplei, naquela desolação selvagem, algo parecido com uma construção humana. Eram pedaços de galhos acumulados que tinham suportado muitos invernos, oferenda vegetal de centenas de viajantes, altos túmulos de madeira para recordar os caídos, para fazer pensar naqueles que não puderam continuar e ficaram ali para sempre embaixo das neves. Também os meus companheiros cortaram com os seus machados os galhos que tocavam nossas cabeças e que desciam sobre nós desde a altura das coníferas imensas, desde os carvalhos cujas últimas folhas palpitavam antes das tempestades do inverno. E eu também fui deixando em cada túmulo uma recordação, um cartão de madeira, um galho cortado do bosque para enfeitar as tumbas de alguns daqueles viajantes desconhecidos.
Tínhamos que atravessar um rio. Esses pequenos mananciais nascidos nos cumes dos Andes se precipitam, descarregam sua força vertiginosa e atropeladora, transformam-se em cascatas, rompem terras e rochas com a energia e a velocidade que trouxeram das alturas insignes: mas essa vez encontramos um remanso, um grande espelho de água, um vau. Os cavalos entraram, perderam pé e nadaram até à outra margem. Em seguida, o meu cavalo foi sobrepassado quase totalmente pelas águas; eu comecei a balançar sem nenhum apoio, meus pés boiavam enquanto o animal lutava por manter a cabeça ao ar livre. Dessa forma, atravessamos. No momento em que chegamos à outra beira, os vaqueanos, os camponeses que me acompanhavam, perguntaram-me com um certo sorriso:
– Sentiu muito medo?
– Muito. Achei que a minha última hora tinha chegado – disse.
– Íamos atrás do senhor com o laço na mão – responderam-me.
– Aí mesmo – acrescentou um deles – meu pai caiu e foi arrastado pela correnteza. Não ia acontecer a mesma coisa com o senhor.
Continuamos até entrar num túnel natural que talvez tivesse sido aberto nas rochas imponentes por um caudaloso rio perdido, ou por um estremecimento do planeta que criou aquela obra nas alturas, aquele canal rupestre de pedra socavada, de granito, no qual penetramos.
Depois de poucos passos, as cavalgaduras já resvalavam, tentavam apoiar-se nos desníveis de pedra, suas patas dobravam-se, produziam-se faíscas nas ferraduras: mais de uma vez me vi atirado fora do cavalo e estendido sobre as rochas. O focinho e as patas da minha cavalgadura sangravam, mas prosseguimos pertinazmente o vasto, o esplêndido, o difícil caminho.
Algo esperava por nós no meio daquela selva selvagem. Subitamente, como singular visão, chegamos a uma pradaria pequena e esmerada, encolhida no regaço das montanhas: água clara, prado verde, flores silvestres, rumor de rios e o céu azul em cima, generosa luz ininterrompida por nenhuma folhagem.
Ali nos detivemos como dentro de um círculo mágico, como hóspedes de um recinto sagrado: e ainda maior foi a condição de sagrada que teve a cerimônia da qual participei. Os vaqueiros desceram das suas cavalgaduras. No centro do recinto, estava colocada, como num rito, uma caveira de boi. Meus companheiros aproximaram-se silenciosamente, um por um, para deixar umas moedas e alguns alimentos nos buracos do osso. Uni-me a eles naquela oferenda destinada a toscos Ulísses extraviados, a fugitivos de todas as espécies que encontrariam pão e auxílio nas órbitas do touro morto.
Mas a inesquecível cerimônia não se deteve neste ponto. Meus rústicos amigos tiraram seus chapéus e iniciaram uma estranha dança, pulando num pé só ao redor da caveira abandonada, repassando o rastro circular deixado por tantas danças de outros que passaram antes por ali.
Compreendi, então, de uma maneira imprecisa, ao lado dos meus impenetráveis companheiros, que existia uma comunicação de desconhecido a desconhecido, que havia uma solicitude, uma petição e uma resposta mesmo nas mais longínquas e afastadas solidões deste mundo.
Mais longe, já perto das fronteiras que me afastariam por muitos anos da minha pátria, chegamos à noite às últimas gargantas das montanhas. Subitamente, vimos urna luz acesa que era indício certo de habitação humana e, quando nos aproximamos, encontramos umas construções derruídas, uns galpões miseráveis que pareciam vazios. Entramos num deles e vimos, ao clarão do lume, grandes troncos acesos no centro da habitação, corpos de árvores gigantes que ali ardiam de dia e de noite e que deixavam sair pelas fendas do teto uma fumaça que flutuava no meio das trevas como um profundo véu azul. Vimos montões de queijos acumulados por aqueles que os coalharam naquelas alturas. Perto do fogo, agrupados como sacos, jaziam alguns homens. Distinguimos no silêncio as cordas de um violão e as palavras de uma canção que, nascendo das brasas e da escuridão, nos trazia a primeira voz humana que tínhamos encontrado pelo caminho. Era uma canção de amor e de distância, um lamento de amor e de saudade dirigido à primavera longínqua, às cidades de onde vínhamos, à infinita extensão da vida. Eles ignoravam quem nós éramos, eles nada sabiam do fugitivo, eles não conheciam a minha poesia nem meu nome. Ou o conheciam, nos conheciam? O fato real foi que junto àquele fogo cantamos e comemos, e depois caminhamos dentro da escuridão até uns quartos elementais. Através deles passava uma corrente termal, água vulcânica onde nos submergimos, calor que se desprendia das cordilheiras e que nos acolheu no seu seio.
Chapinhamos com gozo, penetrando naquela água, limpando o peso da imensa cavalgada. Sentimo-nos frescos, renascidos, batizados, quando ao amanhecer empreendemos os últimos quilômetros da jornada que separar-me-iam daquele eclipse da minha pátria. Afastamo-nos cantando sobre as nossas cavalgaduras, repletos de um ar novo, de um hábito que nos empurrava para o grande caminho do mundo que estava me esperando. Quando quisemos dar (recordo vivamente este fato) aos montanheses algumas moedas de recompensa pelas canções, pelos alimentos, pelas águas termais, pelo teto e pelos leitos, isto é, pelo inesperado amparo que encontramos, eles rejeitaram o nosso oferecimento sem um gesto. Eles tinham nos servido e nada mais. E nesse nada mais, nesse silencioso nada mais havia muitas coisas subentendidas, talvez o reconhecimento, talvez os próprios sonhos.
Senhoras e Senhores:
Não aprendi nos livros nenhuma receita para a composição de um poema; e também não deixarei impresso nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria.
Se narrei neste discurso certos fatos do passado, se revivi um relato nunca esquecido nesta ocasião e neste lugar tão diferentes daqueles, foi porque no transcurso de minha vida tenho encontrado sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para endurecer-se em minhas palavras, mas para explicar-me a mim mesmo.
Naquela longa jornada, encontrei as doses necessárias para a formação do poema. Ali, me foram dadas as dádivas solenes da terra e da alma. E penso que a poesia é uma ação passageira ou solene na qual entram em igual medida a solidão e a solidariedade, o sentimento e a ação, a intimidade de si mesmo, a intimidade do homem e a revelação secreta da natureza. E penso com não menor fé que tudo está sustentado – o homem e sua sombra, o homem e sua atitude, o homem e sua poesia – numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos porque de tal maneira os une e confunde. E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao atravessar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio duma vaca, ao banhar a minha pele na água purificadora das mais altas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para comunicar-se depois com muitos outros seres, ou se era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigência ou desafio. Não sei se vivi aquilo ou se o escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei naquele momento, as experiências que cantei mais tarde.
De tudo isso, amigos, surge uma lição que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos levam ao mesmo ponto: a comunicação daquilo que somos. E é preciso atravessar a solidão e a aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico no qual podemos dançar torpemente ou cantar com melancolia: mas nesta dança ou nesta canção estão consumados os mais antigos ritos da consciência, da consciência de ser homens e de crer num destino comum.
Na realidade, embora alguma ou muita gente tenha me considerado um sectário, sem possível participação na mesa comum da amizade e da responsabilidade, não quero me justificar, não acredito que as acusações nem as justificações façam parte dos deveres do poeta. De qualquer forma, nenhum poeta administrou a poesia, e se algum deles dedicou-se a acusar os seus semelhantes, ou se outro pensou que poderia gastar a vida defendendo-se de recriminações razoáveis ou absurdas, tenho a convicção de que somente a vaidade é capaz de desviar-nos a tais extremos. Digo que os inimigos da poesia não estão entre os que a professam ou resguardam, mas na falta de concordância do poeta. Por esta razão, nenhum poeta tem um inimigo mais essencial do que a sua própria incapacidade para entender-se com os mais ignorados e explorados dos seus contemporâneos; e isso acontece em todas as épocas e em todas as terras.
O poeta não é um pequeno deus. Não, não é um pequeno deus. Não está marcado por um destino cabalístico superior ao daqueles que exercem outros misteres é ofícios. Tenho expressado frequentemente que o melhor poeta é o homem que nos entrega o pão de cada dia: o padeiro mais próximo, que não pensa que é deus. Ele realiza a sua majestosa e humilde tarefa de amassar, colocar no forno, dourar e entregar o pão cada dia, com uma obrigação comunitária. E se o poeta chegar a alcançar esta consciência simples, poderá também a consciência simples converter-se em parte de um colossal artesanato, de uma construção simples ou complicada, que é a construção da sociedade, a transformação das condições que rodeiam o homem, a entrega de uma mercadoria: pão, verdade, vinho, sonhos. Se o poeta se incorporar a esta luta nunca gasta a fim de consignar cada qual nas mãos do outro sua ração de compromisso, sua dedicação e sua ternura pelo trabalho comum de cada dia e de todos os homens, o poeta tomará parte no suor, no pão, no vinho, no sonho da Humanidade inteira. Somente por este caminho inalienável de ser homens comuns chegaremos a restituir à poesia o amplo espaço que lhe é recortado em cada época, que nós mesmos lhe recortamos em cada época.
Os erros que me levaram a uma relativa verdade, e as verdades que repetidas vezes me conduziram ao erro, ambos não me pertimiram – nem eu nunca pretendi isso – orientar, dirigir, ensinar o que é chamado de processo criador, de caminhos da literatura. Mas pude verificar uma coisa: que nós mesmos vamos criando os fantasmas da nossa própria mitificação. Da argamassa do que nós fazemos, ou queremos fazer, surgem mais tarde os impedimentos do nosso próprio e futuro desenvolvimento. Vemo-nos indefectivelmente conduzidos à realidade e ao realismo, isto é,a tomar uma consciência direta daquilo que nos rodeia e dos caminhos da transformação, e depois compreendemos, quando parece tarde, que construímos uma limitação tão exagerada que matamos o que vive, em vez de fazer a vida desenvolver-se e florescer. Impomo-nos um realismo que posteriormente nos resulta mais pesado que o tijolo das construções, sem que por isso tenhamos levantado o edifício que contemplávamos como parte integral do nosso dever. E, em sentido contrário, se conseguimos criar o fetiche do incompreensível (ou daquilo que é compreensível para poucos), o fetiche do seleto e do secreto, se suprimimos a realidade e suas degenerações realistas, nos veremos de repente rodeados por um terreno impossível, por um pântano de folhas, de barro, de nuvens, no qual afundam os nossos pés e somos afogados por uma incomunicação opressiva.
Quanto a nós em particular, escritores da vasta extensão americana, escutamos sem trégua a chamada para encher esse espaço enorme com seres de carne e osso. Somos conscientes da nossa obrigação de povoadores e – ao mesmo tempo que nos resulta essencial o dever de uma comunicação crítica num mundo desabitado, porém, não por desabitado, menos cheio de injustiças, castigos e dores – sentimos também o compromisso de recuperar os antigos sonhos que dormem nas estátuas de pedra, nos antigos monumentos destruídos, nos largos silêncios de pampas plantários, de selvas espessas, de rios que cantam como trovões. Necessitamos colmar de palavras os confins de um continente mudo, e nos embriaga esta tarefa de fabular e de nomear. Talvez essa seja a razão determinante do meu humilde caso individual: e, nessa circunstância, os meus excessos, a minha abundância ou a minha retórica, não seriam nada mais que atos, os mais simples, do mister americano de cada dia. Cada um dos meus versos quis se instalar como um objeto palpável; cada um dos meus poemas pretendeu ser um instrumento útil de trabalho; cada um dos meus cantos aspirou a servir no espaço como signo de reunião onde os caminhos se cruzaram, ou como fragmento de pedra ou de madeira em que alguém, outros, os que virão, pudessem depositar os novos signos.
Ampliando estes deveres do poeta, na verdade ou no erro, até as suas últimas consequências, decidi que a minha atitude dentro da sociedade e perante a vida devia ser também humildemente partidária. Decidi isso vendo gloriosos fracassos, solitárias vitórias, derrotas deslumbrantes. Compreendi, imerso no cenário das lutas da América, que minha missão humana era a de unir-me à extensa força do povo organizado, unir-me com sangue e alma, com paixão e esperança, porque somente desta torrente impetuosa podem nascer as mudanças necessárias para os escritores e para os povos. E embora minha posição tenha causado e cause objeções amargas ou amáveis, o certo é que não encontro outro caminho para o escritor dos nossos amplos e cruéis países, se não queremos que a escuridão floresça, se pretendemos que os milhões de homens que ainda não aprenderam aler-nos nem a ler, que ainda não sabem escrever nem escrever-nos, se estabeleçam no terreno da dignidade sem a qual não é possível serem homens integrais.
Herdamos a vida dilacerada dos povos que arrastam um castigo de séculos, os povos mais edênicos, os mais puros, aqueles que construíram com pedras e metais torres milagrosas, joias de fulgor deslumbrante; povos que de repente foram arrasados e emudecidos pelas épocas terríveis do colonialismo que ainda existe.
Nossas estrelas primordiais são a luta e a esperança. Mas não há luta nem esperança solitárias. Em todo homem se juntam as épocas remotas, a inércia, os erros, as paixões, as urgências do nosso tempo, a velocidade da História. Mas o que seria de mim se eu, por exemplo, tivesse contribuído de alguma maneira com o passado feudal do grande continente americano? Como poderia eu levantar a cabeça, iluminada pela honra que a Suécia me outorgou, se não me sentisse orgulhoso de ter tomado uma mínima parte na transformação atual do meu país? É preciso olhar o mapa da América, encarar a grandiosa diversidade, a generosidade cósmica do espaço que nos rodeia, para entender que muitos escritores se negam a compartir o passado de opróbrio e de pilhagem que obscuros deuses destinaram aos povos americanos.
Escolhi o difícil caminho de uma responsabilidade compartida e, em vez de reiterar a adoração ao indivíduo como sol central do sistema, preferi entregar com humildade o meu serviço a um considerável exército que pode errar às vezes, mas que caminha sem descanso e avança cada dia, enfrentando tanto anacrônicos recalcitrantes, quanto enfatuados impacientes. Porque acredito que meus deveres de poeta não me indicavam somente a fraternidade com a rosa e a simetria, com o exaltado amor e a nostalgia infinita, mas também com as ásperas tarefas humanas que incorporei à minha poesia.
Há exatamente cem anos, um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: “À l’aurore, armes d’une ardente patiente, nous entrerons aux splendides Villes” (Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades).
Acredito nesta profecia de Rimbaud, o vidente. Venho de uma obscura província, de um país separado de todos os outros pela sua talhante geografia. Fui o mais abandonado dos poetas e minha poesia foi regional, dolorosa e chuvosa. Mas sempre tive confiança no homem. Jamais perdi a esperança. Por isso talvez tenha chegado até aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira.
Em conclusão, devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o futuro foi expressado nessa frase de Rimbaud: só com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens.
Assim a poesia não terá cantado em vão.”
Pablo Neruda, 1971
Vitor Paiva Escritor, jornalista e músico, doutorando em literatura pela PUC-Rio, publica artigos, ensaios e reportagens. É autor dos livros Tudo Que Não é Cavalo, Boca Aberta, Só o Sol Sabe Sair de Cena e Dólar e outros amores.
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