O que doutrinas políticas que rejeitam as crenças religiosas podem ter em comum
com a religião de maneira geral? Para o filósofo político John Gray, a ideia de
salvação oferecida pelo marxismo e pelo liberalismo, por exemplo, foi herdada do
pensamento monoteísta. O pensador inglês destaca a importância de se manter o
que ele acredita ser um aspecto construtivo da religião: a proximidade com a
dúvida.
John Gray é conhecido por suas críticas ao humanismo e ao pensamento utópico, e
publicou dezenas de livros, traduzidos para mais de 30 idiomas. Professor emérito
da Escola de Economia e Ciência Política de Londres, ele ganhou notoriedade
com a obra “Cachorros de Palha”.
Assista ao vídeo (legendado) ou leia a transcrição abaixo.
“Creio que a razão pela qual muitas doutrinas políticas ocidentais tenham uma
característica escatológica é que elas herdaram da religião. Especialmente do
monoteísmo ocidental do cristianismo, acima de tudo. E penso que há uma
confusão na cabeça das pessoas que refletem sobre religião. Elas pensam que, se
rejeitarem crenças religiosas, terão rejeitado a religião. Mas a religião é mais que
um conjunto de crenças, é toda uma maneirade pensar, é um conjunto de
categorias e conceitos, que podem sobreviver, e o fizeram, mesmo quando as
crenças já foram rejeitadas.
Logo, muitas das supostas doutrinas ocidentais seculares, incluindo o marxismo e
a maioria das formas de liberalismo, são de fatos categorias e conceitos
monoteístas aplicados sem uma base em crenças religiosas. Agora, como vocês
devem saber, e quem leu meus livros pode saber que, eu, pessoalmente, sou ateu.
Mas eu critico veementemente muitos formatos de ateísmo contemporâneo. Pois
eles me parecem ter pego os piores aspectos da religião ocidental e deixaram
alguns dos… abandonaram algumas das melhores características da religião.
E com piores eu quero dizer o formato fortemente missionário, evangélico e, por
vez, intolerante que, certamente, transmitimos aos comunismo. E, também, com a
afirmação generalista que as religiões usaram para identificar a melhor forma de
viver, ou até a única forma de viver para todos os seres humanos. E, penso, essa é
uma espécie de afirmação intolerante. E que tem sido central para muitas formas
de marxismo e liberalismo. O que eles abandonaram da religião, e que penso ser
bom, é a curiosa noção de que a religião coexistiu por um longo, longo tempo com
a dúvida. Portanto, a fé religiosa é muito próxima da dúvida.
Sei que existem muitos tipos de fundamentalismo no cristianismo, no islamismo e
em outras religiões. Mas, se você observar toda a história do pensamento religioso
ocidental em Santo Agostinho, em grandes pensadores judeus, como Maimônides
e outros, descobrirá que a fé a dúvida coexistem. E ha também, na religião, uma
consciência de defeitos inerentes, de dificuldades inerentes, da fraqueza inerente
da humanidade. E isso meio que limita, limitou até certo ponto no passado, as
tend~encias escatológicas e messiânicas da religião. Elas sempre existiram,
sempre foram perigosas, na minha opinião, sempre foram prejudiciais, causaram
guerras santas e formas de tirania e repressão. Mas havia esses outros elementos
na religião, que mantiveram essas tendências sob controle.
Ao passo que, se você abandonar a noção de uma ordem transcendental, se você
abandonar a noção de que os seres humanos são intimamente falhos, o que hoje é
uma ideia quase que proíbida. É uma ideia muito ofensiva ao gosto moderno, à
sensibilidade moderna, se você disser que os humanos são animais muito
defeituosos, o que penso ser o caso, isso é considerado quase uma espécie de
blasfêmia contra a espécie humana. Mas é verdade.
Antes da concepção cristã, encontramos no Velho Testamento, no Testamento
hebreu, no Testamento judeu, a noção do mito da Gênese, que afirma que o
conhecimento humano é ambíguo. O conhecimento humano não é
necessariamente libertador, ou bom, depende de como os seres humanos o
utilizam.
Essas são ideias muito profundas, e essas ideias eram verdadeiras, pois, apesar
de mitos não poderem ser verdade da mesma forma que teoria científicas o são,
os mitos podem trazer aspectos verdadeiros, ou possuir veracidade, você até
poderia dizer. Se forem abandonados, mas os aspectos apocalípticos e
escatológicos forem mantidos, ou seja, se as categorias e maneiras de pensar de
uma religião são mantidas, mas as crenças forem descartadas, junto com essas
noções, esses mitos profundos, se tais mitos forem abandonados, então o
resultado é o que o grande poeta italiano no início do século dezenove, Leopardi,
chamava de “barbarismo da razão”.
Leopardi era ateu, assim como eu. Ele rejeitou o cristianismo. Isso causou grande
transtorno ao seu pobre pai, que queria que ele virasse um bom católico, e ele
rejeitou. Ele admirava o politeísmo do mundo antigo, mas sabia que não poderia
se tornar politeísta, seria ridículo. Então, ele de fato apoiou o catolicismo, em seu
tempo, pois pensava que o catolicismo, apesar de não compactuar com ele, era
melhor do que o que ele chamava de “barbarismo da razão”. E o barbarismo da
razão é a noção de que todo o mundo, toda a humanidade, só pode viver bem de
uma única forma. E ele achava que isso levaria a enormes guerras, enormes
ditaduras, ele já havia escrito a respeito dos jacobinos na França. Ele disse que
essa espécie de, segundo ele, meia-filosofia, o barbarismo da razão, uma espécie
de religião secular, seria ainda mais intolerante, ainda mais opressiva que o
cristianismo havia sido em seu pior momento. E creio que ele estava certo, é o que
eu penso também.”
Esse material é uma publicação do canal Fronteira do Pensamento