Em outubro de 2020, a poeta americana Louise Glück foi anunciada vencedora do Prêmio Nobel de Literatura. Dona de uma voz única na lírica contemporânea, a um só tempo confessional e econômica, a autora de Wild Iris ainda não fora traduzida em livro para a língua portuguesa quando do anúncio do Nobel.
O poeta e tradutor Pedro Gonzaga, no entanto, apreciador de longa data dos versos de Glück, vinha já desde há algum tempo apresentando ao público um pouco da tocante e refinada poesia da autora laureada.
Seus temas são universais, abrangendo vida e morte, natureza e história, desejo e isolamento.
Nunca consigo decidir
o que escrever
nas lápides de meus pais. Sei
o que ele quer: ele quer
amado, o que por certo
vai direto ao ponto, particularmente
se contarmos todas
as mulheres. Mas
isso deixa minha mãe
a descoberto. Ela me diz
que isto não lhe importa
para nada; ela prefere
ser representada por
suas próprias conquistas. Parece
pura falta de tato lembrar aos dois
que alguém não
honra aos mortos perpetuando
suas vaidades, suas
projeções sobre si mesmos.
Meu próprio gosto dita
precisão sem
tagarelice; eles são
meus pais, consequentemente
eu os vejo juntos,
às vezes inclinado a
marido e mulher, outras a
forças opostas.
Me tornei uma criminosa ao me apaixonar.
Antes disso eu era uma garçonete.
Eu não queria ir para Chicago contigo.
queria que casasses comigo, queria
que tua esposa sofresse.
Queria que a vida dela fosse como uma peça
em que todos os partes são tristes partes.
Pode uma pessoa decente
pensar assim? Eu mereço
reconhecimento por minha coragem —
Sentei-me no escuro de teu alpendre.
Tudo estava claro para para mim:
se tua mulher não te deixava partir
era prova de que não te amava.
Se ela te amasse
não queria que fosses feliz?
Considero agora que
se eu sentisse menos poderia
ser uma pessoa melhor. Eu era
uma boa garçonete,
conseguia equilibrar oito drinques.
Eu costumava te contar meus sonhos.
Noite passada eu vi uma mulher sentada num ônibus escuro —
no sonho, ela chora, o ônibus em que está começa a partir. Com uma das mãos
ela abana; com a outra, golpeia
uma caixa de ovos cheia de bebês
O sonho não resgata a donzela.
Somos todos sonhadores; não sabemos quem somos.
Alguma máquina nos criou; a máquina do mundo, a constritiva família.
Então, de volta ao mundo, polidos por suaves chicotes.
Sonhamos; não lembramos.
A máquina da família: pelagem negra,
florestas do corpo materno.
A máquina da mãe: a cidade branca
dentro dela.
E antes disso: terra e água.
Musgo entre as pedras, pedaços de folha e grama.
E antes, células numa imensa escuridão.
E antes disso, o mundo velado.
É por isto que você nasceu: para me calar.
Células de minha mãe e de que pai, é a sua vez
de ser fundamental, de se tornar uma obra-prima.
Eu improvisei; eu nunca me lembro de nada.
Agora é sua vez de se deixar guiar;
é você quem exige saber:
Por que eu sofro? Por que sou ignorante?
Células numa imensa escuridão. Alguma máquina nos criou;
é sua vez de se dirigir a ela, de ficar perguntando
qual é meu propósito? Qual é meu propósito?
O gato anda em círculos na cozinha
com o passarinho morto,
sua nova possessão.
Alguém deveria discutir
ética com o gato enquanto ele
perscruta o débil passarinho:
nesta casa
nós não exercemos
a força deste jeito.
Diga isso ao animal,
seus dentes já
fundos na carne de outro animal.
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