Espiritualidade

‘Melhora da morte’: por que alguns pacientes graves melhoram pouco antes de morrer?

 

Há termos de diferentes idiomas e épocas para descrever esse fenômeno, inexplicável até hoje para a Ciência: melhora da morte, o último adeus, a iluminação antes da morte (da era vitoriana no Reino Unido), a melhora do fim da vida, a visita da saúde, a melhora da despedida, o último uhul!, episódios de lucidez, a lucidez paradoxal, a lucidez terminal ou o último raio de Sol.

Mas por que alguns pacientes de doenças crônicas ou recentes como a covid-19 apresentam uma melhora súbita antes de morrer?

As dúvidas existem pelo menos desde Hipócrates, médico grego considerado o pai da Medicina, que nasceu quatro séculos antes de Cristo.

Ele e outros outros nomes da Grécia Antiga acreditavam que a alma permanecia basicamente intacta enquanto o cérebro é afetado por um mau funcionamento físico ou distúrbios da mente.

“Eles acreditavam que, durante e após a morte, a alma foi libertada das limitações materiais, recuperando todo o seu potencial. A mente humana seria mais do que um mero produto da fisiologia do cérebro, talvez envolvendo até mesmo um tipo de ‘sujeito transcendental’ ou ‘vida interior oculta'”, explica à BBC News Brasil o biólogo alemão Michael Nahm, que cunhou o termo “lucidez terminal” para o fenômeno e se debruçou sobre relatos históricos do tipo feitos ao longo de centenas de anos.

Há diversas hipóteses que tentam explicar o fenômeno, mas nenhuma delas foi comprovada até agora. Entre elas, oscilações normais em pacientes graves, uma reação química do corpo que funcionaria como um instinto de sobrevivência, o acaso, a persistência da consciência durante a morte e o viés de confirmação, ou seja, pessoas morrem o tempo inteiro, mas acabamos lembrando de histórias surpreendentes de quem melhorou antes de morrer.

Há também diversos obstáculos, inclusive éticos, para testar essas hipóteses, como realizar exames invasivos em pacientes graves. Mas qual seria a relevância de entender isso tudo?

Para Nahm, estudos podem, em tese, abrir portas para entendermos os mecanismos em torno da memória para além do sistema nervoso, por exemplo. “Se as memórias não forem armazenadas apenas no cérebro, isso certamente aumentaria nossa compreensão do processamento da memória e da mente humana, porque isso não poderia ser reduzido a um mero subproduto de neurônios ativados.”

O que dizem os raros estudos

Pesquisadores e especialistas afirmam serem comuns oscilações de consciência em pacientes com demência nas fases iniciais e moderadas da doença.

Mas os casos ligados a esse fenômeno tratam especificamente de episódios inesperados de lucidez (“episódios espontâneos de comunicação relevante e significativa”) em pessoas que haviam perdido a capacidade de se comunicar de forma compreensiva.

A maioria dos estudos e relatos sobre esse tema se concentra em pacientes com doenças neurodegenerativas, mas há registros de casos em pessoas que apresentavam tumores, abscessos no cérebro, meningite, doenças pulmonares em estágio avançado, coma ou acidente vascular cerebral (AVC), por exemplo.

E essa melhora súbita nem sempre ocorre às vésperas da morte. Em 2009, Michael Nahm e Bruce Greyson, pesquisador do departamento de psiquiatria e ciências neurocomportamentais da Universidade da Virgínia (EUA), levantaram 49 casos descritos na literatura médica.

A pequena amostra não permite conclusões profundas sobre o tema, mas dá algumas pistas do fenômeno ou da tendência dos pesquisadores de relatarem mais casos com essas características. Dos 49 casos, 43% foram de melhora súbita 1 dia antes da morte, 41% de 2 a 7 dias e 10% de 8 a 30 dias.

A maioria dos pacientes tinha demência, cuja forma mais comum é o mal de Alzheimer. Em geral, essa síndrome tem um quadro de atrofia gradual do cérebro, perda de sinapses e neurônios e acúmulo de substâncias tóxicas associado a um declínio cognitivo que compromete diversas áreas, como memória, linguagem e raciocínio.

A prevalência da demência entre pacientes com melhora súbita às vésperas da morte aparece também em estudo produzido pelo filósofo e cientista cognitivo Alexander Batthyány, pesquisador de instituições da Hungria, Aústria, Rússia e Liechtenstein.

Ele analisou 38 casos descritos de pacientes com demência. Do total, 44% ocorreram 1 dia antes da morte e 31%, de 2 a 3 dias. Além disso, 43% dos episódios duraram menos de uma hora e 16% duraram 1 dia ou mais.

Mas, até o momento, não há estudos que apontem quantos casos de fato existem por ano dessa melhora antes da morte. Ou seja, há diversos relatos de casos publicados, mas nenhum que de fato quantifique ou investigue o que está acontecendo no cérebro durante esses episódios em, por exemplo, pacientes com demência.

As principais hipóteses

Um grupo de dez pesquisadores, entre eles Nahm e Batthyány, analisou em 2018 as evidências científicas em torno do fenômeno e chegou à conclusão que é bastante improvável que ele seja explicado por uma regeneração dos neurônios afetados ao longo do tempo.

Por outro lado, essas oscilações de consciência podem refletir “ajustes complexos em cascatas de sinalização (um evento desencadeia o outro), modificações sinápticas, interações na rede neuronal e, talvez, compensação ou reversão temporária da inibição funcional crônica devido a proteínas neurotóxicas”.

Fernandes, do Hospital das Clínicas da USP, aventa a hipótese, por exemplo, de o corpo emitir uma descarga de hormônios de estresse quando percebe que está próximo da morte, como uma situação conhecida como “luta ou fuga”, que é a resposta fisiológica que funciona como uma espécie de instinto de preservação.

Ele explica que, na fase imediata dessa situação, há uma liberação de adrenalina e outras substâncias que leva a mudanças no corpo, como aumento da frequência cardíaca e pressão arterial, que melhoram o funcionamento de outros órgãos possivelmente comprometidos, a exemplo de uma melhor ativação neuronal e até da lucidez do paciente.

“Isso pode ser na hora em que o corpo sente que está próximo de morrer. Ele então teria essa liberação, mas ela é transitória. E quando esses compostos se esgotam, o paciente piora e vem a falecer.”

Segundo ele, caso essa explicação seja confirmada, ela também poderia trazer pistas sobre por que essa melhora súbita é rara.

“Em pacientes com doenças respiratórias graves, por exemplo, o consumo dos hormônios de estresse já ocorreu antes de o paciente poder ter a chance de ter uma melhora como essa. Mas alguns pacientes que têm essa reserva podem conseguir fazer uso desse expediente fisiológico.”

Stafford Betty, professor de Estudos Religiosos da Universidade do Estado da Califórnia, diz que a questão passa pelo que alguns chamam de alma.

“Pense em uma mulher que perdeu toda a sua capacidade de se comunicar com outras pessoas e, por alguma estranha razão, pouco antes de morrer, ela irrompe em sua antiga personalidade, com seu cérebro totalmente destruído, e consegue de repente conversar com pessoas amadas. A razão de esses momentos de lucidez aparecerem é que a consciência do ser (que alguns chamam de alma) conseguiu se desvencilhar do cérebro e funcionar independentemente do sistema nervoso.”

Mesmo depois da morte como a conhecemos? Talvez sim, explica a neurofisiologista Jimo Borjigin, da Universidade de Michigan.

Ela liderou um estudo com ratos em 2013 que apontou que mesmo após o coração e circulação sanguínea pararem o cérebro continuava funcionando. Mais especificamente, havia ondas gama, associadas nos humanos à consciência. Isso poderia explicar as experiências de lucidez terminal, por exemplo.

Borjigin explica que alterações nos níveis de oxigênio levam o cérebro a ser capaz de fazer com que pessoas com apneia do sono acordem e voltem a respirar, e um mecanismo semelhante ocorre com pacientes de doenças crônicas. “Nesses casos, quando um limite é ultrapassado, o cérebro é ativado e temporariamente aumenta sua atividade com um alto nível de consciência que permite falar, agir racionalmente e talvez isso seja o que esteja por trás da lucidez terminal.”

Para os pesquisadores que analisaram as evidências em torno da melhora antes da morte, uma das hipóteses que o estudo liderado por Borjigin aponta é que, à medida que os níveis de oxigênio e glicose caem ou oscilam, há um aumento dos níveis de neurotransmissores que resultariam em uma ativação transitória ou instável do cérebro.

“Mas esses aumentos de atividade elétrica ou de liberação de neurotransmissores não explicariam como pode haver uma melhoria da comunicação ou da sincronização no cérebro.”

Para Peter Fenwick, que foi professor do Instituto de Psiquiatria do King’s College de Londres e escreveu o livro The Art of Dying (A Arte de Morrer, em tradução livre), é possível concluir a partir desses relatos que a humanidade ainda não tem uma compreensão adequada da relação entre mente e cérebro.

Para ele, o termo “lucidez terminal” está ligado a um conceito mais antigo, chamado “teoria da transmissão”, cunhado no fim do século 19 pelo psicólogo e filósofo americano William James.

Segundo Fenwick, o cérebro seria como uma televisão, mas a mente está em outro lugar, como parte de uma consciência universal. O cérebro capta o sinal da mente, mas não a produz. Como uma televisão que não produz o programa em si, mas o exibe, como se filtrasse a informação externa. E, quando o cérebro não está funcionando direito, o sinal está lá, mas distorcido. Pouco antes de morrer, o cérebro para de distorcer o sinal, e a mente surge claramente.

O problema para comprovar alguma dessas hipóteses é a série de obstáculos logísticos, científicos e éticos.

Um exemplo é que esses pacientes já não podem, por si sós, autorizarem a participação em estudos científicos. Outro é que submeter pessoas nesse estágio da vida a exames (invasivos ou não) poderia afetar a saúde delas ou mesmo impedi-las de viver esse momento significativo com entes próximos.

Caso os cientistas consigam encontrar soluções para essas barreiras, há diversos caminhos possíveis apontados pelo Instituto Nacional de Envelhecimento dos Estados Unidos (NIA, na sigla em inglês), que passou a financiar estudos para entender os episódios de lucidez em pacientes com demência avançada, não necessariamente pouco antes da morte. Por isso, especialistas do instituto falam em “lucidez paradoxal” e não em “lucidez terminal”.

Entre eles, projetos com monitoramento em áudio e vídeo desses pacientes durante esses episódios ou questionários retrospectivos com profissionais de saúde e familiares que levantem dados sobre quão frequentes eles são, fatores genéticos, o conteúdo das conversas, medicamentos em uso, entre outros.

Para Basil Eldadah, supervisor médico no NIA, entender esse fenômeno pode transformar o que se sabe sobre deficiência cognitiva e demência.

“Também podemos ampliar nossa compreensão sobre consciência e personalidade em pessoas com demência, o que pode afetar a maneira como cuidamos delas. E compreender melhor a lucidez paradoxal poderia ajudar os cuidadores a lidar com as preocupações éticas e de tomada de decisão que podem surgir após testemunhar um episódio de lucidez”, disse ele, ao convidar pesquisadores a se debruçarem sobre o tema.

Viés de confirmação e significados para os familiares

Uma das principais hipóteses aventadas para o fenômeno passa pelo viés de confirmação, que é a tendência a procurarmos sempre por mais evidências que confirmem nossa opinião.

Durante décadas, estudos sobre o viés de confirmação mostraram que é mais provável que a gente pesquise, preste atenção e se lembre de algo que valide nossas crenças.

Nesse caso, o viés confirmatório teria um componente fortemente afetivo.

“O fato de serem histórias marcantes faz com que a gente hipervalorize a frequência delas na nossa memória e com isso a gente tenha a impressão de que se trata de algo muito mais frequente do que realmente é. E talvez seja essa explicação. Talvez sejam acontecimentos ao acaso que a gente simplesmente transforma em eventos”, afirma Fernandes, do Hospital das Clínicas da USP.

Nahm, que cunhou o termo “lucidez terminal”, diz que “o viés de confirmação pode muito bem ser um fator” e “é por isso que documentar as ocorrências da inversão lúcida no curso de doenças demenciais é tão importante”. Mas acredita que “a neurofisiologia do cérebro desempenhe um papel relevante” nesse fenômeno e não seja “o caso apenas de um viés de confirmação”.

A médica Suelen Medeiros e Silva, coordenadora do serviço de cuidados paliativos do hospital Sírio Libanês em Brasília, discorda. Segundo ela, flutuações de consciência fazem parte da trajetória de pacientes com doenças graves em contexto de fim de vida.

“Há alguns dias em que o paciente está melhor e há alguns dias em que ele está pior. E pode ser que coincidentemente, de forma aleatória, aconteça algum tipo de melhora do quadro antes de vir a falecer, mas sem relação de causa e efeito. A gente tende a lembrar mais dos pacientes que melhoram, mas depois falecem, do que daqueles que melhoram e não falecem logo depois.”

O segmento de cuidados paliativos é uma abordagem multidisciplinar (médicos, psicólogos e enfermeiros, por exemplo) que cuida de pacientes com doenças graves com enfoque em qualidade de vida e controle de sintomas.

Segundo ela, mesmo neste setor, o número de casos de melhora súbita pouco antes da morte é muito pequeno, e por isso, na avaliação dela, não é possível estabelecer a relação de causa e efeito para o fenômeno.

Mas isso não chega a esvaziar sua importância. Pelo contrário. Medeiros e Silva afirma que não cabe a ela, como médica, invalidar crenças espirituais ou tentar dar explicações a perguntas de familiares como “ele melhorou para se despedir?” ou “ele vai receber alta e poder voltar para a casa?”.

“Quando eu me deparo com uma situação dessa em que não há explicações técnicas, o que eu tento trazer e desenhar com a família é entender qual é o significado que a família traz para aquilo e como aquela experiência que a família está tendo pode até ajudar a lidar com aquela dor.”

Ela conta que por anos buscou explicações técnicas para as experiências com pacientes em fim de vida, mas com o tempo percebeu que não precisava delas.

“Hoje me preocupo muito mais em saber o quanto que isso traz de significado para a família e em empoderá-la a aproveitar esse momento. Falo que devemos aproveitar o dia de hoje. O paciente está conversando. Fale o que você quer dizer, ouça o que ele tem a dizer. Porque esse momento transforma a vida. É quase um presente. Se amanhã vier a morte ou a melhora, a gente vai viver o dia de amanhã. Mas hoje o que a gente tem é essa melhora e nos cabe aproveitá-la.”

A médica recorda do caso de um paciente que, pouco antes de morrer, estava bastante sonolento e mal respondia aos estímulos, como costuma ocorrer quando a morte se aproxima. Sua família queria muito que ele conseguisse resistir até a chegada de dois netos para que pudesse benzê-los, como fazia antes de adoecer.

“Quando os netos chegaram, surpreendentemente ele abriu os olhos, sentou e com a voz bem baixa fez uma oração para cada neto. Era

um momento sagrado para a família. E a mulher dele me olhou sorrindo como quem dizia ‘Era disso que precisávamos’.” Ele acabaria morrendo horas depois.

Artigo completo em G1

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