Literatura

Memórias Difusas, de Ivete Nenflidio

Com sutileza e tom acessível aos leitores, Ivete vai descortinando as nuances do amor, saudade, dia a dia, paixão, arte, imaginação, do eu lírico que se perde e se encontra ao transitar nas próprias experiências e vulnerabilidade em diferentes momentos e em tempo e espaço íntimos.

5 POEMAS DO LIVRO “MEMÓRIAS DIFUSAS”

Teu nome

Se tu fosses uma palavra, certamente seria a mais bela,

talvez eu te chamasse de adorável,

ser encantado que desorienta minhas razões.

Ou te chamasse de caminho, mas não qualquer um,

tu serias aquele com harmonioso cenário,

ainda poderia chamar-te de mistério

ou de infinito, já que não posso imaginar tua dimensão.

Teu nome poderia ser chuva,

rio ou o nome de qualquer substância fluida que mate a minha sede,

também te chamaria de marés e lembraria o balanço do teu corpo sobre o meu.

Então começo a divagar por pensamentos e me vem a saudade,

palavra bonita que também me lembra de ti.

Recordo tantas outras belas palavras:

coragem, esperança, memória,

sem dúvida, teu nome seria o mais sublime de todos.

Mas nome bonito mesmo é liberdade

e tu terias nome e sobrenome.

***

Devaneios

Distraída, pego-me pensando em ti,

amei sem que tu soubesses,

sem que tu percebesses.

Preciso me acostumar com a tua ausência

e buscar, na escassez de ti,

respostas.

Não espero mais o beijo,

só ficaram planos e o querer.

Tento não pensar mais em ti.

Antes te encontrava dentro de mim,

agora tento eliminar as lembranças,

rasurar meus poemas, apagar teu nome.

***

Eco

Chove na noite

entorpecida de vento,

de frio nevoento

descampado,

distante das ondas cordiais,

ondas de afeto.

É só uma noite qualquer,

e na calada da noite

se faz necessária

outra missão,

emaranhadas lições

incompreendidas,

algo inventivo a cumprir…

Vivendo na colina eremítica

de ilusões trágicas

de vida ilusória,

mora na rua,

ilha de estradas

escorregadiças,

de cristais glaciais,

descida que faz rolar

a frenética e roliça

pedra do gelo,

alude que soterra,

que enterra…

Muros mudos,

janelas cegas,

noite afora,

o relógio que não para,

tempo sem hora,

gélida e cálida…

Atrista as mãos

do sangue que congela,

bafos de fumaças

de invernada,

fumos de frio,

que gela e cala…

***

Lusco-fusco

Na busca por novos caminhos,

tento decifrar desatualizadas cartas,

primitivos manuscritos com raros caracteres,

não compreendo, são frases implícitas,

confusas visões… bifurcações…

Confesso segredos em breves distrações;

definitivo lusco-fusco,

singela luz do declínio,

doce crepúsculo,

chega sem pressa…

É um fugaz divisor das águas.

Estou inquieta, tento meditar, busco a paz,

não sinto o vento,

na febre você partiu,

hoje fotografo seus olhos para te esquecer,

procuro a melhor metáfora poética.

***

Delírio

Desejo de solo estrelado,

uma ceia,

velas acesas,

luz de candeia,

espero mãos que passeiam,

dedos arados…

Na madrugada não se demore,

se vista de rio,

more nas minhas margens,

se alimente do fruto

do chão sagrado,

não reine silêncio, seja delírio.

Tenho olhos apressados,

caudalosos, de terra árida

e na escassez infinita dos seus olhos,

pálpebras rachadas de sede,

imagino seus passos sísmicos

e sob os seus pés

a sombra que persegue.

O profundo mar em Memórias Difusas,

por Lilian Farias (Escritora, professora e educadora social)

Ivete Nenflidio, no livro Memórias Difusas, transforma o amor e a liberdade em entidades e a poética é a teia que liga esses dois elementos. Em diversos momentos esses conceitos estão tão interligados que não se sabe onde um começa e onde o outro termina.

“(…) amo-te livre!

Voa para me esquecer

e se sentir saudades;

voe para voltar (…)”

Não há amor mais independente quando se respeita a liberdade do ser amado, retira o ônus do ‘Nós’ e estabelece fronteiras entre o ‘Eu’. “(…) chegue sem pressa”. Mas o amor não vive só da liberdade. Você tem fome de quê? Às vezes, de intimidade.

“Se tu fosses uma palavra, certamente seria a mais bela,

talvez eu te chamasse de adorável,

ser encantado que desorienta minhas razões.

Ou te chamasse de caminho, mas não qualquer um,

tu serias aquele com harmonioso cenário,

ainda poderia chamar-te de mistério

ou de infinito, já que não posso imaginar tua dimensão (…)”

A intimidade, neste caso, vem da convivência do conhecer e desconhecer diariamente “já que não posso imaginar tua dimensão”, e da própria capacidade imaginativa.

“(…) de peito aberto lhe contei meus maiores segredos

meus maiores desejos.

Tu me acalmaste com o silêncio,

me ajudaste a enterrar fantasmas,

me libertar das algemas,

esquecer o passado,

já não penso no estrago (…)”

O ser amado adentra e se mistura as nossas histórias, frustrações, vivências, sobrevivências e reforma o Eu. De tal modo que adjetivamos essa experiência para que a sanidade não seja somente um artefato lúdico na história.

“(…) Sem pedir licença, penetrou meu mar,

me fez mulher…

Singelos segredos do beijo roubado,

beijo molhado, minha boca em você…”

Não menos importante, a paixão se destaca ou se alastra, os corpos se unem pelo desejo de explorar, sentir. “(…) Sentimos nossos corpos ávidos, / cálidos, aflitos, / que clamam, corpos em chamas (…)”. E os receptores sensoriais rompem tabus e ninguém abdica de nada porque ter e não ser é urgente, o desejo é uma via de mão dupla, mais uma vez, libertador, não pertence a padrões ou moralismo. É simplesmente pela capacidade de sentir e não subjugar.

“(…) Te tocarei com os olhos,

te falarei com as mãos.

Examinarei cada parte,

te entregando fragmentos de

todos os meus sentidos”

Essa voz canta, clama, reclama seu direito ao sonho, ao delírio, o belo e até mesmo ao incômodo para que possa criar sua própria existência, seu ‘Eu’ com história, presente e futuro. De modo que, em todos os textos a sonoridade dos elementos da natureza dá vida ao místico – terra, fogo, ar e água e fazendo jus ao título, Difusas, o éter que é a expansão. Mar, que por uma vogal não foi amar, é o elemento de maior potencial por ser a essência de toda obra onde a alquimia acontece e o movimento se manifesta.

Mar profundo

Na desabitada costa de La Perla,

fitando a amplidão de horizonte intocável,

com passos lentos caminha a poetisa…

Seu pequeno corpo busca o descanso,

seus desajeitados passos marcam a areia fina e macia,

no aveludado caminho, recorda amores que não viveu,

viagens de uma vida não vivida, sucessiva caminhada…

Em seu derradeiro olhar, assiste a cores,

recorda seu breve destino, idealiza cada cena, visões trágicas! (…)

Em Memórias Difusas nem só de palavras vive um texto porque a água escorre, faz ondas, limpa, revela, esconde. O corpo é água, o mundo é água, a vida é água e quando as emoções transbordam, a água dissolve e regenera.

Sobre a escritora Ivete Nenflidio

Com 48 anos, natural de São Bernardo do Campo – SP, Ivete Nenflidio é escritora, pesquisadora das manifestações tradicionais brasileiras, curadora artística de festivais e articuladora cultural especializada em Sustentabilidade Aplicada aos Negócios, em Leis de Incentivo à Cultura, desde 1996.

Como autora, publicou livros de poesia, contos, crônicas e romances, entre eles as antologias: “Memórias Difusas” e “País Estrangeiro” (Editora Beira), a obra “Cartografias da saudade” (produção independente). Além da ficção “Calendas de Março”, obra viabilizada com recursos da Lei Aldir Blanc. Está em fase de lançamento de outras duas publicações: “Ataque” e “O sereno que habita meus olhos”, com previsão de lançamento para maio de 2022 pela Editora Telha.

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