Literatura

Mia Couto lançará livro de contos no Brasil no 2º semestre

Um dos principais autores do continente africano, Antônio Emílio Leite Couto, o Mia Couto, vai lançar no Brasil, no segundo semestre deste ano, As Pequenas Doenças da Eternidade, um livro de contos que tem relação com a pandemia de covid-19 e com a infância do autor na cidade de Beira, a quarta maior de Moçambique.

Com mais de 30 livros publicados e editados em mais de 30 países, Mia participou, na tarde desta quarta-feira (12), da edição de abril do Clube de Leitura no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). O debate sobre literatura segue até dezembro, com novos convidados, sempre na segunda quarta-feira do mês. A entrada é de graça e pode ser agendada pelo site bb.com.br/cultura.

Em entrevista à TV Brasil, o autor, que já recebeu dezenas de prêmios, incluindo o Camões, o maior da literatura em língua portuguesa, e o Neustadt, considerado o Nobel norte-americano de literatura, elogiou a produção literária brasileira e falou sobre a importância de Jorge Amado para os países da África lusófona.

Mia vivenciou a Guerra Civil de Moçambique, conflito armado que começou em 1977, após a independência do país africano de Portugal. Durante quase 16 anos, a guerra deixou cerca de 1 milhão de mortos em combate e por conta da fome. Segundo a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), mais de 8 milhões de pessoas fugiram do país no período.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

TV Brasil: Conte um pouco sobre seu novo livro As Pequenas Doenças da Eternidade:
Mia Couto: É um livro que vai buscar contos que já foram publicados em Portugal com o título O Caçador de Elefantes Invisíveis. O que eu fiz foi retomar uma parte desses contos e depois somei outros 12, 14 contos neste formato. A pandemia da covid-19 está presente em cinco, seis histórias. Não a doença em si, mas a maneira como essa pandemia foi percebida em Moçambique, e de que modo os moçambicanos olharam e não se deixaram intimidar. Essas apreciações diferentes do que é o mundo invisível para a medicina moderna e para os moçambicanos rurais, onde a invisibilidade é comum. Mas o livro também tem a ver com a história da minha infância, em momentos com a minha mãe, onde eu construía uma espécie de eternidade para que aquele momento fosse guardado no tempo.

TV Brasil: O que te inspira a escrever?
Mia Couto: É uma maneira de encontrar os outros dentro de mim. Quando eu escrevo sobre uma mulher, essa escrita só é verdadeira se ela essa mulher existe dentro de mim.

TV Brasil: A sua obra abrange diversos gêneros, como contos, crônicas e romances. Tem alguma preferência?
Mia Couto: A minha casa é a poesia. Depois eu saio, vou visitando outros territórios. Mas onde eu vivo, onde eu onde eu me sinto à vontade, é na poesia.

TV Brasil: Por que Moçambique é uma terra sonâmbula?
Mia Couto: Porque é um processo histórico muito longo que nós só começamos, que é criar uma nação a partir de nações historicamente antigas. E fazer com que essas nações possam viajar entre línguas diferentes, entre culturas, religiosidades diferentes que existem em Moçambique. O país tem 30 línguas vivas diferentes do português. E que são as línguas principais da comunicação. São as línguas faladas no cotidiano. E como costurar tudo isso? Existe uma espécie não exatamente de sonambulismo, mas uma espécie de viagem permanente entre entidades diversas.

Leia também: “Guerra dos Palhaços” – um conto de Mia Couto sobre a frequente irracionalidade da violência

TV Brasil: Quais foram os impactos da Guerra Civil de Moçambique?
Mia Couto: Foram enormes. Primeiro, o país se tornou uma ruína. Essa guerra aconteceu no país que já era um dos dez mais pobres do mundo. Tudo que era recurso do ponto de vista de construção – estradas, enfermarias, hospitais, escolas – foi destruído completamente. E não estou a falar só das coisas, mas das pessoas. Os ataques se dirigiam, em primeiro lugar, contra os enfermeiros, contra os professores, contra tudo aquilo que trazia uma ideia nova de um tempo novo, de uma outra forma de gerir, de administrar aquele país. Era quase uma guerra religiosa. Tudo o que simbolizava a modernidade era tido como ameaça.

TV Brasil: Como foi recomeçar depois de 16 anos de guerra?
Mia Couto: Quando eu estou a falar de 16 anos de guerra, estou a falar de 1 milhão de mortes. Metade dos moçambicanos teve que procurar refúgio em outros países. É por isso que agora, quando se fala da guerra da Ucrânia, é como se não existissem outras guerras. Quando começaram a ver os refugiados que atravessavam o Mediterrâneo, parece que se descobriu que havia refugiados de guerra, e Moçambique estava ali há quantos anos com essa tragédia. Quem recolheu esses refugiados foram países pobres: Malawi, Zâmbia, Zimbábue. Aqueles que tinham pouco dividiram com os moçambicanos. É muito difícil falar de alguma coisa que nos obriga a um certo esquecimento. A simples lembrança do que sucedeu é muito traumática. Eu saía de casa todos os dias sem saber o que traria para dar de comer às minhas crianças. Não foi um dia, não foram meses, foram anos.

TV Brasil: Como você avalia a produção cultural brasileira?
Mia Couto: Eu acho que o Brasil tem toda a razão de ser orgulhoso e vaidoso da sua produção cultural. Para nós, os africanos de língua portuguesa, eu estou a falar agora só da literatura, nós temos uma dívida enorme com as referências que nos chegaram. É preciso falar, em primeiro lugar, de Jorge Amado. Ele foi uma referência para nós absolutamente essencial em todos os cinco países africanos de língua portuguesa, esse nome ajudou a descobrirmos a nós próprios. Do ponto de vista literário, eu fui buscar mais a Drummond. Fui buscar a João Cabral de Melo Neto aquilo que era a prosa, a prosa poética do João Guimarães Rosa e por causa também da influência do meu pai, que era poeta, ele teve uma enorme proximidade com autores brasileiros, mas era mais ligado ao Manuel Bandeira.

TV Brasil: De que forma a literatura pode contribuir para a paz?
Mia Couto: Quem lê percebe que dentro deles estão aqueles personagens todos incluindo esse inimigo que pode surgir numa história de uma guerra. E, se a gente construir essa história de forma humana, eu acho que a literatura tem esse papel de humanizar o outro, mesmo que o outro seja um adversário, seja um inimigo. A guerra começa antes do primeiro disparo, a guerra começa nesse processo de humanização do outro, e a literatura é uma forte resistência contra esse processo de desumanizar o outro.

Assista na TV Brasil:

Fonte: Por Flávia Grossi – Repórter da TV Brasil – Rio de Janeiro
Agência Brasil

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