Por João Marcos Buch – autor e desembargador substituto
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“Esta semana um detento foi morto dentro da unidade prisional. Eu tinha feito uma audiência dois dias antes com o rapaz. Conversamos um pouco. Ao final da audiência eu autorizei que recolocassem as algemas e que o conduzissem de volta à prisão. Dele me despedi. Ele acenou em resposta, desejou-me uma boa tarde e se foi. Tinha 24 anos de idade, 24 anos! Nessa mesma idade, aos 24 anos, eu me tornei juiz. O que aconteceu em nossas vidas para que os destinos de um e outro fossem tão distintos? Por que para alguns a vida sorri e para outros ela volta as costas? O que eu sei é que eu sempre tive casa, comida, roupa lavada, fui incentivado a estudar, meus pais pagaram a faculdade particular de direito que cursei, depois me ajudaram a me manter até que eu consegui passar no concurso da magistratura. Nada do que eu passei em minha trajetória se compara minimamente à vida desse rapaz que foi morto e certamente à vida dos milhares de jovens presos neste país, em sua maioria negros e na totalidade provenientes de meios socialmente vulnerabilizados. Eu tive oportunidades, boas oportunidades, e por isso aos 24 anos eu me tornei juiz de direito. Aos 24 anos esse rapaz teve a vida encerrada. Eu já tive a idade dele, ele nunca terá a minha. Isso não é justo!_”(Joinville, 14/12/2018).
Estamos no ano de 2023. Sou desembargador substituto, no Tribunal de Justiça, em Florianópolis/SC. Enfrento uma grande demanda de processos, com obstáculos e contingências. Os estudos são complexos, técnicos e com alto grau de responsabilidade. Entretanto, a estrutura que se oferece é relevante e o trabalho em colegiado torna o pensamento jurídico mais eclético. E como o direito é apaixonante, com tempo para desenvolver métodos e entregar julgamentos maduros, atento aos direitos fundamentais, não tenho do que reclamar.
Mas tenho do que lembrar! O “muramento” que um gabinete produz da realidade pode ser tão sólido e opaco a ponto de causar a insensibilidade que mantém o “status quo social”. Por isso, mantenho-me dentro da realidade brasileira de milhões de pessoas. Aliás, meu gabinete, do qual não pretendo mudar, é voltado para o vulnerabilizado morro do Mocotó, não para a baía sul, com suas lanchas e iates. E já na entrada dele, o quadro onde me vejo face a face com dezenas de encarcerados nas inspeções prisionais que palmilharam meus últimos anos, está pendurado, para que cada vez que eu entre em minha sala, eu veja de onde vim. E eu vim detrás daquele quadro, detrás da história que abre este texto, detrás da prisão.
Quem esteve no inferno costuma guardar a experiência apenas para si. Há uma sensação de que palavra alguma transmitirá o que foi aquele tempo e lugar. De fato, é um sentimento que não se explica. Mas se não falarmos a respeito, mesmo que para nós mesmos, como elaborar nossas estruturas, como encarar nossos monstros mais secretos?
Não sei se estive exatamente no inferno, essa construção religiosa, mas certamente estive no fundo do poço, disso não tenho dúvidas. E talvez tenha sido o inferno, vai saber!
Diferente do trabalho no segundo grau, como juiz da execução penal as exigências ultrapassam os limites da razoabilidade, e não só nas matérias penais e processuais. O magistrado que assume seu dever de enfrentar a realidade, nos pavilhões, galerias e celas da cadeia, tentando fazer com que as coisas se tornem menos duras e mais próximas do direito, encontra barreiras enormes, em boa parte intransponíveis. É dura a tarefa, mais ainda quando se rema contracorrente, diante de quem por preconceito e, em certa medida, má-fé, ataca e tenta ferir quem defende causas humanas.
Foram muitas vivências, que aliás inspiraram e inspiram minhas escritas, que acabaram sendo até objeto de um longa-metragem, ainda por estrear – a sétima arte a cumprir seu papel. Entretanto, apenas agora, quando releio o texto do rapaz assassinado na prisão, com as memórias do cárcere tão presentes, que eu me pergunto: como sobrevivi? Eu lutava por um sol que não via nascer, por lampejos de luz que não duravam, por gotas de brilho que não caiam. Então, repito, como sobrevivi? Parafraseando Dostoiévski, em sua obra “Irmãos Karamázov”, como viver com semelhante inferno em nosso peito e nossa cabeça? O que o grande romancista russo talvez tenha querido perguntar foi como manter nosso coração aquecido, enquanto tantos outros sentem frio? O fundo do poço, que era o fundo da cela, encerrava-se num grito lancinante e permanente a percutir pelas paredes de minhas catedrais.
Há coisas das quais nunca nos recuperamos totalmente. Os sofrimentos sufocados, de quem perdeu tudo, talvez até a esperança, são parte dessas coisas. Elas penetram em nosso ser, para depois levar partes de nós, deixando em seu lugar seus próprios traçados, em indeléveis desenhos, muitos pintados pelo vermelho de sangue roubado.
Na época, eu não tinha noção da intensidade cruel a que estava inserido e que também me atingia, tanto quanto os demais. No fundo do poço, ou da prisão, eu era preenchido por gritos interrompidos. Tanto que, quando me ofereciam um afeto, uma palavra de carinho, um abraço fraterno, não reconhecia a gentileza. O poço era tão profundo e eu estava tão imerso nele que era quase impossível emergir. Acredito que parte de mim permanece nele e compreende que deve nele ficar.
Melhor seria que esse poço, recheado do horror da neutralização e aniquilamento de corpos negros e corpos vulnerabilizados, jamais fizesse parte da história. Mas ele faz! Há os que não o enxergam, há os que sabem de sua existência e se preocupam, há os que nele mergulham… Eu mergulhei e meus sentidos foram tocados. Talvez sem essa experiência eu nunca tivesse aprendido que justiça se alcança não só com a lei, com as regras, as normas, mas especialmente com ética e humanismo.
Minha caminhada até aqui foi propiciada por pessoas que me entenderam, me respeitaram e confiaram em mim, que me salvaram. Meu compromisso é emergir, inspirar, expirar, inspirar novamente e voltar a imergir, retornar ao fundo do poço, para (re)encontrar a todos, ou ao menos aqueles que ainda não morreram aos 24 anos…
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