Os horrores de uma guerra, assim como outras experiências impactantes, podem causar modificações genéticas possivelmente transmitidas às futuras gerações.
Por mais impactante que seja – como o corpo morto de menininho sírio na areia – nenhuma imagem conseguiria retratar o estrago psicológico que a violência provoca nas crianças que conseguem escapar da morte.
Ao conviver com o desespero e presenciar a morte de familiares, elas dificilmente escapam de problemas como privação do sono, ansiedade, perda de interesse, funções cognitivas alteradas, distraibilidade, pesadelos, agressividade, hipersensibilidade ao barulho, apatia, flashbacks e mutismo.
São sintomas do stress pós-traumático (TSPT) – um transtorno mental que pode trazer prejuízos ao longo de toda a vida e geralmente se soma a outros problemas, como abuso de substância, alteração permanente nos níveis de cortisol e depressão severa.
O terror que se aloja na psique, dependendo da intensidade, só perde a nitidez e a força com o tempo, tratamento psicológico e resiliência, mas dificilmente vai embora para sempre.
Nem a morte da vítima é suficiente para derrotar o monstro do trauma: resistente, ele pode se manter vivo em outras gerações.
A presença de sintomas de stress pós-traumático entre filhos de refugiados é uma das principais manifestações da possibilidade do ambiente promover alterações na expressão genética, deixando marcas que podem atravessar gerações.
A epigenética, ciência que estuda essas modificações, ainda está em suas investigações iniciais, mas já revelou ao mundo algumas mensagens de impacto: que mudanças biológicas não necessariamente fazem parte de um processo evolutivo lento e – ainda mais formidável – que as experiências que nos modificam como ser humano podem ser herdadas por nossos filhos e netos, sejam elas boas ou más.
Cada vez mais pesquisas comprovam que os genes são dinâmicos e influenciados por fatores externos aos quais somos constantemente expostos, incluindo alimentação, uso de substâncias e, logicamente, o stress.
O meio altera, em nível celular, nossa suscetibilidade a doenças, por exemplo. Muitos tipos de cânceres estão associados a mudanças no epigenoma decorrentes da exposição a toxinas e nutrição pobre.
Recentemente, uma pesquisa do Instituto Nacional de Ciências de Saúde Ambiental, no estado americano da Carolina do Norte, concluiu que filhos de mães fumantes apresentavam modificações nos genes que aumentavam suas chances de sofrer de asma, vício em nicotina e abuso de substância. Foi avaliada uma alteração epigenética específica (de grupo metil) de quase 900 bebês.
Os herdeiros dos filhos das guerras vêm contribuindo muito para essas investigações.
Uma das principais referências em stress pós-traumático é a neurocientista americana Rachel Yehuda, também entre os pioneiros nos estudos da epigenética.
Ela investiga como os grandes traumas mudam profundamente as vítimas, ainda que de diferentes formas, e avalia as chances dessas marcas serem carregadas para a geração seguinte. Seu mais recente estudo sobre esse processo foi publicado em agosto do ano passado, envolvendo vítimas e filhos de vítimas do Holocausto.
Rachel comprovou, em observações dos genes associados à regulação do hormônio do stress, o cortisol, que alterações epigenéticas são evidentes tanto nos pais quanto em seus descendentes, que nunca tiveram contato direto com os horrores da guerra. A forma como essas pessoas respondem ao stress, portanto, é alterada.
Em pesquisas anteriores, a neurocientista já havia descoberto que os filhos de refugiados têm três vezes mais chances de apresentar TSPT após viver um episódio traumático.
Antes de fazer as análises clínicas, ela tinha constatado, em entrevista com centenas de descendentes de refugiados, que muitos diziam vivenciar os sintomas, sofriam de ansiedade e mostravam dificuldade exagerada em enfrentar divórcios e outras separações, como o distanciamento dos próprios pais.
Ter a consciência da própria pré-disposição a danos psicológicos, de acordo com Rachel (em entrevista ao programa de podcast On Being) é o primeiro passo em direção ao equilíbrio.
Ela lembra que a partir da consciência das possíveis alterações biológicas e do conhecimento de que elas têm o propósito de estender nosso repertório de respostas a situações desafiadoras, podemos encontrar nosso verdadeiro potencial e capacidades. Para que as marcas do passado possam fazer parte da vida sem, no entanto, tomar conta dela, é importante saber de onde viemos.
Os achados de Rachel e outros pesquisadoras da epigenética atestam o pioneirismo de um naturalista francês que, 50 anos antes de Darwin escrever A Origem das Espécies, defendia que o organismo sofria modificações para se adaptar ao meio e que essas características alteradas seriam transmitidas para as próximas gerações.
Duzentos anos mais tarde, as ideias criticadas e desprezadas de Jean Baptiste Lamarck seriam a base dos princípios de uma das áreas mais impactantes e reveladoras da ciência. Uma área que, além de destacar a importância dos fatores externos na nossa saúde e na das futuras gerações, ainda nos conforta mostrando que nascer com um conjunto de genes não nos coloca em uma prisão biológica, como antes se acreditava.
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