É improvável que passemos um dia inteiro sem escutar alguma música – geralmente usada como moldura sonora de situações sociais ou de pensamentos que nos acompanham no trajeto de casa para o trabalho. Apenas quando vencemos a força centrípeta gerada pelas ações consideradas produtivas ou importantes, ao nos permitimos sentar numa plateia, é que a música se transforma na atração principal daquele momento. Impossibilitados de ceder às distrações que usualmente nos consomem grande parte do dia, ficamos entre duas opções: mergulhar no infinito e obscuro universo de possibilidades que a mente constrói incansavelmente ou, simplesmente, escutar. Sem buscar sentido e sem analisar, presenciando por inteiro as infinitas variações da expressão musical.
O contato íntimo com qualquer forma de beleza exige um ajuste na nossa percepção da realidade. Surge da capacidade de focar em um determinado estímulo e ignorar os concorrentes. Quando conseguimos calar outros processos cognitivos que disputam espaços na mente geramos crescimento a partir da percepção. Sem a atenção, em sua forma plena, privamos os sentidos do prazer engrandecedor da entrega. Sem presença, reconhecemos beleza, mas não a sentimos, não a deixamos penetrar no espaço emocional.
“Felicidade é estar no presente”, resumiu o filósofo Alan Watts, um dos grandes difusores do pensamento asiático no mundo ocidental. A presença, em sua aparente simplicidade, guarda algo impalpável e abstrato que perseguimos com frequência nos lugares errados. Observar atentamente – ou estar presente – é requisito para perceber a totalidade da vida e deixar-se maravilhar por ela.
“Como o que sabemos do futuro é feito apenas de elementos abstratos e lógicos – inferências, palpites e deduções – ele não pode ser degustado, sentido, visto, ouvido ou desfrutado de alguma forma. Persegui-lo é como perseguir um fantasma um que constantemente nos escapa e quando mais corremos para alcançá-lo, mais rapidamente ele foge. É por isso que a civilização corre apressada, raramente valoriza aquilo que tem e está sempre querendo mais e mais. A felicidade, então, consiste não em realidades sólidas, mas em algo abstrato e superficial, como promessas e expectativas”, conclui Watts em The Wisdom of Insecurity (A Sabedoria da Insegurança).
Sem conseguirmos nos livrar, ao menos de vez em quando, da angústia de sermos comandados pelo relógio e da pressão que representam os ideais que nossa cultura constrói (e propaga tão bem), acabamos ficando em um constante estado de alerta. Percebemos sinais de que atrás de alguma árvore pode haver um predador: o coração acelera, apetite, sono e respiração ficam alterados, causando uma sensação paralisadora de ameaça.
Estar no presente permite desligar a capacidade da mente de alertar para as infinitas possibilidades que podem estar nos aguardando. Nos devolve a tranquilidade de aceitar a realidade e o fato de não podermos ter o futuro sob controle. Aquieta a ansiedade e, dessa forma, nos coloca em contato com o fascínio, que permite encontrar confiança. Pois enxergar o mistério pode ser o mais próximo que podemos chegar do esclarecimento.
Muito antes do termo mindfulness ganhar popularidade no Ocidente, a psicóloga e pesquisadora Ellen Langer, do departamento de Psicologia da Universidade de Harvard, estudava o fenômeno da atenção plena. Quando a mente está presente, ela defende, nos tornamos sensíveis ao contexto. Mas não basta decidir estar presente: o domínio da atenção é uma habilidade que, como qualquer outra, precisa ser exercitada.
Começa com a prática de perceber. “A iluminação parte de processos muitos simples”, ensina o filósofo austríaco Rudolf Steiner em A Iniciação, em que apresenta formas de desenvolver a habilidade de se conectar ao que chama de “mistérios superiores da existência” – o que só é possível por meio de um processo meditativo. Na época, isso ainda era considerado parte de um campo do ocultismo, restrito a poucos. Steiner derruba essa ideia, mostrando que o treino da atenção plena – ou “iluminação”, como aborda – é acessível a todos e “procede da mesma forma que com todo o restante saber ou capacidade do ser humano”: basta estar disposto e ter a paciência para desenvolver e despertar sentimentos e pensamentos latentes.
“O início se fará com a contemplação, de uma determinada maneira, de diversos seres da natureza – por exemplo, uma transparente e bem-formada pedra (cristal), uma planta e um animal. Procure inicialmente dirigir toda a atenção à comparação da pedra com o animal, da seguinte forma: os pensamentos que para aí são dirigidos terão de atravessar a alma acompanhados de sentimentos vivos. E nenhum outro pensamento, nenhum outro sentimento poderão intrometer-se e perturbar a contemplação intensiva e compenetrada”, instrui. Essa contemplação profunda pode ser direcionada a outros sentidos: para alguns, dirigir a atenção às informações sonoras do ambiente é o meio mais eficaz de alcançar o estado meditativo.
Trazer a mente para o presente envolve também o exercício da aceitação, outro conceito enraizado na filosofia oriental. Deixar de se apavorar com as possibilidades imaginárias depende de aceitarmos – e até apreciarmos – o incerto. “Tudo muda e tudo se torna diferente a partir de outra perspectiva. Portanto, o estado inteligente de consciência seria de incerteza. Mas somos ensinados a procurar pelo absoluto. Temos a noção equivocada de que absolutos existem e que devemos conhecê-los. Mas o que acontece é que uma vez que você tem certeza de alguma coisa, você não presta atenção nela, não está presente para perceber as mudanças e perde oportunidades – seja no trabalho ou nos relacionamentos”, disse em entrevista ao programa On Being.
Devemos lembrar que qualquer pergunta que nos fazemos mentalmente vem com todos os tipos de possibilidades – tanto negativas quanto positivas. Criadas e alimentadas pela mente ausente, essas suposições estão quase sempre erradas. Errar nas positivas pode trazer uma enorme frustração. Errar nas negativas – sempre as mais comuns e acompanhadas de evidências que construímos com maestria – nos coloca em constante estado de preocupação. Coisas ruins acontecem, mas é bom trazer à consciência que nossas previsões raramente correspondem à realidade e que, mesmo em momentos difíceis, o cenário imaginado pode ser muito pior que o evento real.
Quebrar a moldura do absolutismo e aceitar o incerto, tanto no campo individual como universal, requer reconhecer o que de fato está sob nosso controle e deixar fluir sem resistência aquilo que não está. Esse exercício de confiança na vida nos mantém atentos às necessidades de mudanças e evolução, nos ensina que diferentes pontos de vista são enriquecedores e nos permite um contato mais íntimo e realizador com as belezas que a ansiedade geralmente oculta.
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