Sociologia e Política

O racismo separa famílias indígenas

Por Guilherme Cavalli, no site do CIMI (Conselho Indigenista Missionário)

No Mato Grosso do Sul (MS) o integracionismo, realidade ligada à aculturação e assimilação, assumiu dissimuladamente o teor de política pública. Vítimas do racismo sistemático que perdura cinco séculos, os povos indígenas enfrentam historicamente diversas violências – desde invasão dos territórios tradicionais até as políticas de “embranquecimento”. Hoje, o estado com 92% do seu território como propriedade privada, dos quais 83% são latifúndios, faceia políticas etnocídio.

Um relatório divulgado pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de Dourados oficializa as frequentes denúncias feitas pela Aty Guasu, grande assembleia Guarani e Kaiowá: crianças indígenas estão sendo retiradas das aldeias quase que semanalmente pelo Conselho Tutelar e levadas para abrigos da região Cone Sul do MS. A realidade foi denunciada pela organização indígena ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e ao comissário da Organização dos Estados Americanos (OEA), em reunião realizada em novembro na capital federal.

A Aty Guasu, em carta divulgada em outubro, evidencia os abusos do poder público na retirada das crianças de suas famílias. Segundo a organização, a forma como são feitas as intervenções pelos “órgãos de proteção” desrespeita o modo de vida física e cultural do povo Guarani e Kaiowá, e são fundamentadas em “conceitos e interpretações racistas, preconceituosas, primárias, ignorantes à diversidade dos povos indígenas”. Tais ações, segundo o conselho, afrontam os direitos específicos, costumes e organização social do povo.

Dourados

Em Dourados vivem aproximadamente 215 mil pessoas, das quais 21 mil são indígenas. Contudo, 60% das crianças acolhidas nas instituições e abrigos pertencem a algum povo da região. Dos 79 acolhidos em Dourados, 50 são indígenas. O levantamento do órgão indigenista aponta que 88% das instituições de acolhimento são particulares – não governamentais. Elas acolhem um total de 65 crianças e jovens indígenas, 50 só em Dourados (MS). Caarapó, Ivinhema, Maracajú e Rio Brilhante abrigam os outros 15 indígenas.

Dos 65 indígenas, 20 são crianças de até cinco anos de idade, na primeira infância; oito foram retirados de suas mães com menos de 1 ano; três retirados ao nascer, com poucos dias de vida. Em porcentual, 63% são de 0 a 11 anos e 37% de 12 a 17. Sexo: 69% meninas e 31% meninos.

“Levar uma criança indígena para um lugar totalmente desconhecido dela, onde não tem ninguém de seu grupo de referência, ninguém parecido com ela, que fale e entenda seu idioma, que oferte os mesmos cuidados de higiene e alimentação de seu povo é apontado pelas famílias com as quais conversamos como uma violência gigantesca”, expõe o relatório da Funai que sistematizou um plano de ação para a efetivação do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e jovens indígenas.

O documento, resultado de um levantamento feito em junho de 2015, busca mapear os casos de crianças e jovens indígenas em situação de acolhimento institucional e familiar da região de Dourados.

Direito constitucional violado

Desde 1988, a Constituição Federal dedica um capítulo à proteção dos direitos indígenas e, ao assegurar o direito à diversidade cultural, dá fim a políticas integracionistas. Contudo, o que constata o órgão indigenista do governo federal são práticas de desrespeito às condições sociais e culturais Guarani e Kaiowá sob ótica de superioridade da sociedade nacional frente à sociedade indígena. “Esquece os costumes, esquece a língua materna, esquece, num movimento que pode ser facilmente caracterizado como estratégia de genocídio, porque tirar as crianças de um povo também é condenar esse povo a não ter futuro coletivo”, aponta o documento.

No estado mais violento para os povos indígenas – em 2016 foram 15 mortes e 16 tentativas de assassinato-, o que persiste é um conflito instalado.

Em uma realidade de atuação onde, dos 345 conselheiros tutelares eleitos nos 79 municípios, somente nove são indígenas, o racismo institucional é presente nos espaços do Estado. “[…] fica também explícito em conceitos equivocados e preconceitos que impactam negativamente na forma como são conduzidas as abordagens, as avaliações, os acolhimentos, as reinserções e as adoções de crianças indígenas no MS, num crescente de violação do direito à convivência familiar e comunitária dessas crianças e jovens junto a seu povo.”

Sobre o despreparo e racismo dos profissionais que realizam a retirada, o texto aponta que “alguns profissionais ligados às instituições não demonstravam qualquer cuidado em verbalizar na frente das crianças suas impressões preconceituosas contra os povos indígenas e seus modos de viver”. Frases como “tão bonito que nem parece índio”, “índio que mora na cidade não é índio” elucidam o preconceito.

Élida e outras mães

A lei 12.010/2009, com a inclusão do parágrafo 6º ao artigo 28, adverte ordenamento jurídico as políticas de adoção e estabelece o critério de rejeição comunitária, além derespeitar a identidade, os costumes e tradições, como prerrogativa para retirada. Também, sustenta-se o caráter prioritário da adoção de crianças indígenas por membros da sua própria comunidade ou etnia para a proteção de sua cultura.

Caracterizada como insana e sob critérios de pobreza, Élida Oliveira, moradora do tekoha Nhuverá, teve o filho apartado de seus braços sete dias após o nascimento. Com apenas uma semana de vida, Wender Raoni (nome dado pelo juiz) foi levado pelo Conselho Tutelar para o abrigo Lar Santa Rita, em Dourados.

Em reunião do conselho da Aty Guasu, Élida denunciou a triste experiência vivida no dia em que seu filho fora retirado. Segundo a indígena Guarani Kaiowá, seu filho foi levado pelo Conselho Tutelar sob o argumento de que “iria realizar uma consulta médica”. A violência ocorreu em fevereiro de 2015.

Após três anos, a indígena é considerada “confusa mentalmente” e por isso está proibida de visitar seu filho na casa de acolhimento. “Eu amo muito o meu filho. Não estou sozinha, hoje existe muitas mães desesperadas, na mesma condição que eu me encontro”. Élida é porção de uma realidade maior de violações. São violações étnicas. Para um povo que tem na gravidez o resultado de um sonho e no nascimento o momento em que a palavra se senta e provê o lugar do que nasce na comunidade, retirar uma criança do seu tekoha é romper a conexão com o seu modo de ser e de se organizar.

Como base de organização social, os Guarani e Kaiowá compreendem a família extensa, formada por pelo menos três gerações: avô, avó, filhos e filhas, genros e noras, netos e netas. “A tipologia das famílias nos revela os enlaces das vivências familiares e comunitárias onde as relações sociais são construídas e nos provocam a reconhecer e respeitar os diferentes arranjos familiares atualmente observados e, em especial no caso dos povos indígenas, também os arranjos tradicionais”, ressalta o relatório da FUNAI sob citação de Tonico Benites, antropólogo Guarani Kaiowá.

No caso de Élida e de outras tantas famílias indígenas, o que aparou a retirada é a “indigência”. A pobreza é o “resultado da negligência histórica do Estado Brasileiro, não de nossas famílias”, aponta a nota da Aty Guasu.

“A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar, um grande número de crianças indígenas ainda são retiradas de suas famílias tendo esta justificativa, disfarçada, pois negligência é o novo nome da pobreza nos processos”, corrobora o relatório da Funai.

“Não há justiça que possa tirar o direito de ser mãe, de educar e criar o seu próprio filho. Educamos as crianças Guarani na coletividade. Juntamente nos batizamos e a partir disso todos são responsáveis pelas crianças. Por isso, repudiamos essas ações de tirar as crianças da nossa comunidade”, lamenta Daniel Kaiowá, professor.

ECA e os Povos Indígenas

A retirada de crianças indígenas de suas comunidades foi comum nos países colonizados, que aderiram política de apagamento identitário dos povos. Recentemente o Canadá criou políticas de remissão pelas “Escolas Residenciais”, criadas para o que chamavam de “reeducação” dos indígenas. Um genocídio cultural retirou aproximadamente 150 mil crianças de suas comunidades indígenas no país, deixando aproximadamente 3.200 mortes decorrentes de maus tratos, abandono e suicídio. As escolas existiram até o ano de 1993.

No Brasil, a lei que integra as políticas do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) normatiza que os casos de adoção ou colocação familiar de indígena ou quilombola devem ser acompanhados dos serviços dos Auxiliares da Justiça – antropólogos, assistentes sociais, psicólogos. A Aty Guasu desconhece a presença dos profissionais recomendados pelo ECA nos processos de retirada ocorridos no MS.

A medida foi estabelecida para evitar o desrespeito às origens étnicas. Élida fala somente Guarani. No momento da retirada de seu rebento, nenhum suporte de tradução foi realizado. A palavra – tão sagrada para a cultura do seu povo – sempre foi dirigida à mãe no idioma colonizador, o português. Por não ter tradutor e sem suporte jurídico, Élida não é parte integrante do processo que julga a retirada do seu filho. Sem tradução, o processo infringe o artigo 12 da Convenção 169 da OIT, que estabelece o auxílio de intérprete quando trata-se de povos indígenas e tribais.

O ECA estabelece ainda que o acolhimento familiar ou institucional deve ocorrer no local mais próximo à residência dos pais. Para a Funai, isso não tem acontecido na região.

“Devido à distância com a comunidade, a criança vai se acostumando com a ausência dos parentes e conhecidos, vai se acostumando aos novos hábitos que lhe são impostos, esquece os costumes, a língua materna”, destaca o texto.

“O completo despreparo indigenista, antropológico, linguístico da rede, tem submetido nossas crianças à costumes não indígenas, impregnadas de preconceitos, costumes e soluções que inviabiliza seu retorno à sua família”, aponta a Aty Guasu que acusa a prática de “forçada integração social dos povos indígenas, característico de iniciativas etnocidas”.

Aty Guasu e o direito de consulta violado

Constituído há mais de 40 anos, o conselho da Aty Guasu é a instância superior para decisões do povo Guarani e Kaiowá. Contudo, o direito de livre consulta sobre a vida do povo, amparado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, permanece historicamente negado à organização. Frente às políticas de adoção, nunca foram procurados.

“As intervenções nas famílias Guarani e Kaiowá são unilaterais e parciais, tendenciadas a agir de forma desrespeitosa com o movimento indígena. Qualquer ação para a proteção das crianças Guarani, por garantia da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, deveriam ser tomadas com moderação da Aty Guasu”, comenta Lídia Farias Neqav, do Conselho Indigenista Missionário no MS.

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