Distinguida por vários de nossos mais significativos prêmios literários, presente em numerosas antologias de poesia e ficção, tanto nacionais como estrangeiras, há muito seu nome está incluído nos dicionários de autores brasileiros contemporâneos.
De temperamento transgressor, prezando a liberdade, dona de uma rara beleza e coragem, culta e poeta, Hilda teve uma personalidade marcante e sedutora que ia de encontro aos costumes tradicionais vigentes nos anos 50, criando-se um folclore ao seu redor que, segundo alguns críticos, até chegou a ofuscar a importância de sua obra.
Criadora de textos magníficos, onde Atemporalidade, Real e Imaginário se fundem e os personagens mergulham no intenso questionamento dos significados, buscando compreensão, resgate da raiz, encontro do essencial, Hilda retrata sem cessar nossa limitada/ilimitada, frágil e surpreendente condição humana.
Descubra a seguir 10 dos melhores e encantadores poemas de Hilda Hilst:
Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.
Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.
Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Com este poema, venceu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, no ano de 1984, e o Prêmio Cassiano Ricardo do Clube de Poesia de São Paulo, em 1985.
Ela ainda recebeu outros prêmios por seu trabalho como o Prêmio APCA para o seu livro Ficções, considerado o melhor do ano em 1977. Recebeu ainda o Grande Prêmio da Crítica para o Conjunto da Obra em 1981.
Vida da minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
Buscando-me a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças
Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.
Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijolos
Pás, a areia dos dias
E tudo que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.
Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.
Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu
Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.
Após ler o livro Carta a El Greco, de Nikos Kazantzakis, a escritora resolve sair da vida agitada de São Paulo e muda-se para a fazenda da mãe em Campinas. Passou dois anos construindo ao pormenor a sua Casa do Sol, que ficou pronta em 1966 e onde viveu até o fim de sua vida em 2004, aos 73 anos.
Não te espantes da vontade
Do poeta
Em transmudar-se:
Quero e queria ser boi
Ser flor
Ser paisagem.
Sentir a brisa da tarde
Olhar os céus, ver às tardes
Meus irmãos, bezerros, hastes,
Amar o verde, pascer,
Nascer
Junto à terra
(À noite amar as estrelas)
Ter olhos claros, ausentes,
Sem o saber ser contente
De ser boi, ser flor, paisagem.
Não te espantes. E reserva
Teu sorriso para os homens
Que a todo custo hão de ser
Oradores, eruditos,
Doutos doutores
Fronte e cerne endurecido.
Quero e queria ser boi
Antes de querer ser flor.
E na planície, no monte,
Movendo com igual compasso
A carcaça e os leves cascos
(Olhando além do horizonte)
Um pensamento eu teria:
Mais vale a mente vazia.
E sendo boi, sou ternura.
Aunque pueda parecer
Que del poeta
Es locura.
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
Canto Primeiro
Se algum irmão de sangue (de poesia)
Mago de duplas cores no seu manto
Testemunhou sem anjo em muitos cantos
Eu, de alma tão sofrida de inocências
O meu não cantaria?
E antes deste amor
Que passeio entre sombras!
Tantas luas ausentes
E veladas fontes.
Que asperezas de tato descobri
Nas coisas de contexto delicado.
Andei
Em direção oposta aos grande ventos.
Nos pássaros mais altos, meu olhar
De novo incandescia. Ah, fui sempre
A das visões tardias!
Desde sempre caminho entre dois mundos
Mas a tua face é aquela onde me via
Onde me sei agora desdobrada.
Mas não falou somente de amor. Aproveitou para usar os seus poemas como meio de mostrar o seu descontentamento com os governantes da época.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.
Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.
Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.
Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.
Tudo é triste. Triste como nós
Vivos ausentes, a cada dia esperando
O imutável presente.
Tudo é triste. Triste como eu
Antiga de carícias
De olhos e lamentos
Lenta no andar, lenta
Irmã
De algum canto de ave
De silêncio na nave, irmã.
Vamos partir, amor.
Subir e descer rios
Caminhar nos caminhos
Beijar
Amar como feras
Rir quando vier a tarde.
E no cansaço
Deitaremos imensos
Na planície vazia de memórias
Perto do fim, sabia bem quem era. Uma mulher a frente de seu tempo, habilidosa e mágica com as palavras. Hoje, a sua Casa do Sol foi transformada no Instituto Hilda Hilst, onde está preservado o seu acervo pessoal.
Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.
E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.
Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.
Com adaptações de Pensador / sociedadedospoetasamigos
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