Por Alberto Manguel / Via Fronteiras do Pensamento
Quando o Coelho Branco aparece diante do Rei Vermelho para dar seu depoimento no País das Maravilhas, diz que não sabe por onde começar. “Comece do começo”, lhe diz o Rei, “e continue até chegar ao final. Então pare”. Mas o que é esse começo? São João, pensando sem dúvida que dessa forma esclarecia o complexo dogma cristão, escreveu que no começo era o verbo.
Séculos mais tarde, na primeira parte de Fausto, o desiludido médico procura nessa primeira palavra o entendimento que sente que lhe falta. Lutero teria traduzido esse verbo (logos) como wort, “palavra”, perdendo assim os outros sentidos implícitos no vocábulo grego, e Fausto se propõe a lê-los como “sinn”, “kraft” e “tat” – “intelecto”, “força” e “ação” –. Para Fausto, todas essas coisas estão no começo do livro sagrado.
As palavras iniciais de todo texto devem fazer pressentir as páginas seguintes. Pausada ou bruscamente, resumindo o argumento ou distraindo o leitor para que ele não adivinhe o desenlace, indicando o tom da narração que virá ou dando falsos indícios, se desculpando ou se vangloriando da aptidão do autor, as primeiras palavras são o gesto de reconhecimento e desafio lançados do ponto final de um livro ao leitor que inicia o percurso. Por motivos geralmente misteriosos, algumas dessas aberturas se tornam tão célebres que se transformam em lugares-comuns, enquanto outras são relegadas ao esquecimento como paixões fugazes.
Todo leitor reconhece o aterrador início de A Metamorfose, de Kafka: “Em uma manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregorio Samsa se encontrou em sua cama transformado em um monstruoso inseto”. Ninguém pode se esquecer do inapelável começo de O Contrato Social, de Rousseau: “O homem nasceu livre e por todos os lados se encontra acorrentado”. Por que lembramos do musical início de As Ruínas Circulares, de Borges (“Ninguém o viu desembarcar na unânime noite”), e não com igual facilidade “Gostávamos tanto da casa porque, além de ser espaçosa e antiga”, de A Casa Tomada de Cortázar? Talvez pelo poder do inaudito adjetivo “unânime”, bem mais memorável do que os banais, ainda que exatos, epítetos “espaçosa e antiga”.
Isso sugere que talvez nos deixamos seduzir mais prontamente pelo tom dos começos do que por seus significados. “Fala-me, Musa, do varão de grande engenho” com que começa a Odisseia e “Canta, Deusa, a cólera de Aquiles” da Ilíada dependem, para que lembremos deles, e a menos que saibamos grego antigo, da tradução que escolhemos para lê-las.
Odisseia. Homero. Século VIII antes de Cristo. | “Fala-me, Musa, do varão de grande engenho…”. |
Ilíada. Homero. Século VIII antes de Cristo | “Canta, Deusa, a cólera de Aquiles…”. |
A Divina Comédia. Dante Alighieri. 1321. | “Na metade do caminho da vida, me encontrava em uma selva escura porque perdi o verdadeiro caminho…”. |
Dom Quixote de la Mancha. Miguel de Cervantes. 1615. | “Em um lugar da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim magro e galgo corredor”. |
O Contrato Social. Jean-Jacques Rousseau. 1762. | “O homem nasceu livre e por todos os lados se encontra acorrentado”. |
Memórias póstumas de Brás Cubas. Machado de Assis. 1881. | “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte”. |
Anna Karenina. León Tolstói. 1877. | “Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz o é à sua maneira”. |
A Metamorfose. Franz Kafka. 1915. | “Em uma manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregorio Samsa se encontrou em sua cama transformado em um monstruoso inseto”. |
Em Busca do Tempo Perdido. Marcel Proust. 1913-1927. | “Durante muito tempo fui me deitar cedo”. |
Lolita. Vladimir Nabokov. 1955. | “Lolita, luz da minha vida, fogo das minhas entranhas”. |
Cem Anos de Solidão. Gabriel García Márquez. 1967. | “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía recordaria aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. |
Sem levar em consideração as páginas preliminares que Cervantes escreveu para seu Dom Quixote, mesmo os que não leram o romance sabem de cor as primeiras hoje célebres palavras do primeiro capítulo. Apesar, entretanto, dos inumeráveis comentários que apareceram desde a publicação do livro em 1605 (e ainda antes, quando circulavam cópias manuscritas do livro, como provam as respostas que dá Lope a Cervantes em El Peregrino en su Patria, publicado no ano anterior), não sabemos nada de como Dom Quixote foi composto. Não conservamos um manuscrito feito por Cervantes, não sabemos quais foram seus primeiros esboços, suas dúvidas, quais outras palavras iniciais foram imaginadas e descartadas, qual foi sua inspiração inicial.
O imprescindível Francisco Rico, comentando em 1996 uma edição crítica do Dom Quixote de Rodríguez Marín, observou que a longa nota sobre aquele “lugar da Mancha de cujo nome não quero me lembrar” demonstrava a influência de “um minguado romancezinho que nem o autor nem ninguém poderia ter em conta” e não dizia nada sobre a palavra lugar, que o leitor, segundo Rico, “interpreta indefectivelmente e equivocadamente como ‘local’, ‘paragem’ e não como povoadinho”. Rico acrescenta que a emoção que podem despertar no leitor as famosas palavras de Cervantes muitas vezes precisa dispensar todo o arcabouço crítico. As primeiras palavras de uma obra prima podem prescindir de facilitadores.
Goethe dizia que, antes de escrever um livro, era preciso tê-lo “todo na cabeça” porque “um livro não começa necessariamente pela primeira frase”. Provavelmente isso é verdade, mas há algo inefável nas palavras iniciais que para um leitor é o “Abre-te, Sésamo”, de um texto. “Arma virumque cano”, “Nel mezzo del cammin di nostra vita”, “Call me Ishmael”, “Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz o é à sua maneira”, “Longtemps je me suis couché de bonne heure”, se transformaram, ao longo de nossas leituras, em uma espécie de catálogo abreviado da literatura universal canônica.
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