Publicado no Facebook de Robson Rodrigues, coronel da PM do RJ
Cada morte violenta me arranca um pedaço da alma, pois os mais de 60 mil homicídios ao ano nos distancia, e muito, do lugar civilizatório que, julgo, mereceríamos ocupar como país tão lindo como o nosso. Calo, sofro, choro em silêncio. Não me apraz falar, não me apraz comparecer a rituais de despedida fúnebre e sentir o sofrimento das pessoas, principalmente dos familiares, em respeito a suas dores. O cargo me obrigou a assistir inúmeros enterros, de inúmeras vítimas policiais de uma guerra fratricida que nos prostra enquanto seres humanos. Uma guerra inglória. Abri uma exceção por um dever de consciência; para falar de uma amiga, a vereadora Marielle, porque, se sua morte me impactou, muito mais tem impactado a forma vil e cega e infame como ela vem sendo tratada por algumas pessoas nas redes sociais. Pessoas que não conheceram Marielle. Senti-me na obrigação de informar a amigos desinformados sobre quem ela era; amigos que considero e que são bombardeados por bobagens e falsas informações sobre a vereadora que não conheceram. Segue abaixo uma dessas mensagens que enviei a um amigo a quem considero bastante e que talvez possa servir a outros amigos.
Caro amigo xxxx (oficial PM)
Te conheço há bastante tempo para saber o quanto você é inteligente para não se deixar levar por esses discursos que destilam o ódio, mesmo nesses momentos de dor. Deveríamos, sim, nos unir enquanto sociedade contra o maior problema civilizatório que nos afeta e dilacera: a violência homicida. Apesar disso, há pessoas que insistem em simplificar questão tão complexa, dividindo o mundo em direita e esquerda. Você está além disso que eu sei.
Choro pelas mortes infames, do cidadão comum, dos meus amigos, dos meus amigos policiais dos quais já perdi a conta inúmeras vezes. Meu primeiro serviço como aspirante foi atender a ocorrência do assassinato de um policial militar, adorado em
meu Batalhão. Chorar com sua família me fez pensar o quão difícil seria aquela trajetória profissional que eu havia abraçado.
Meu sentimento é expressado nos versos do poeta John Donne: “a morte de qualquer homem (ou mulher) me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Choro agora por uma amiga admirável, sobretudo porque lutava contra essa estupidez e sonhava com uma sociedade melhor. A vereadora Marielle era corajosa; lutava a favor das minorias, mas principalmente contra a estupidez das mortes desnecessárias que têm endereço e destinatários certos. Mortes muitas vezes festejadas por pessoas que querem que nós, policiais, façamos para elas o serviço sujo de um extermínio fascista. Não se esqueça que também acabamos vítimas dessa estupidez.
Conheci Marielle quando ela me trouxe, de forma educada mas contundente, o caso de algumas mães amedrontadas com a ação de policiais que barbarizavam moradores de uma certa favela com UPP. Os fatos eram indefensáveis. Aqueles comportamentos não era o que se podia esperar de uma instituição que existe para combater o crime, mas, sobretudo, para servir à população. Tomei minhas providências. Se Marielle veio até mim buscando solução, era porque confiava na polícia, pelo menos em parte dela, uma parte da qual eu te incluo. Marielle, assim como nós, não confiava na polícia violadora de direitos, na polícia bandida, mas confiava na instituição policial, naqueles que não querem que ela seja instrumentalizada para fins vis e elitistas, sendo direcionada para os mesmos estratos de onde a maior parte de nossos próprios policiais vem.
Depois disso ela me procuraria para saber como ajudar policiais que sofriam abusos, assédios moral e sexual e outros tipos de violações de direitos. Eu te pergunto: alguém que “só quer defender bandido” teria esse comportamento?
Na ocasião, me lembro de ter comentado com ela do sofrimento dos policiais subalternos, da mulher policial, da mulher negra policial etc. Um fato em especial me tocava naquele momento: o de viúvas de PM. Eu disse a ela que uma das formas de ajudar poderia ser agilizando os processos de obtenção de suas pensão. Há trâmites administrativos que emperram a pensão da viúva e que extrapolam as possibilidades da corporação; há também a lentidão da investigação da morte dos policiais militares por parte da PCERJ, que é formalidade do processo. Ela se interessou e, depois, junto com o deputado Marcelo Freixo, criaram um núcleo de atendimento a policiais. Mesmo depois de ter deixado a PM, encaminhei alguns casos a eles.
Nossos praças e oficiais mais subalternos, principalmente as policiais negras, são discriminadas diariamente em nossa instituição, sofrem assédios, sobretudo por parte de pessoas como nós, oficiais e brancos. Recentemente a PM impôs limite de vagas para mulheres no concurso do CFO, mas contra isso ninguém de dentro se colocou. Marielle se interessava por essas causas, que, infelizmente, ainda não tocam nossa sensibilidade institucional. Com suas bandeiras ela defendia muito mais nossos policiais do que nós fomos capazes de compreendê-lo e de fazê-lo.
Portanto, postagens maldosas como essas, que vêm circulando nas redes sociais, além de não retratarem a realidade, são de um imenso desrespeito não só à historia de Marielle, mas aos nossos policiais honestos e trabalhadores sofridos, sobretudo as policiais negras, que tanto necessitam ser acolhidos nas causas que ela magnificamente defendia. Que tenhamos Marielle presente para transformar nossa polícia em uma instituição melhor para a sociedade e para policiais vocacionados.
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