Quando se pensa em patrimônio histórico e cultural de uma grande cidade como São Paulo, é bem provável que despontem na memória – e no resultado de buscadores na internet – locais como a Catedral Metropolitana de São Paulo, na Sé, e o Pateo do Collegio, ambos localizados no centro histórico da cidade. Pode-se pensar em patrimônios arquitetônicos, como o Theatro Municipal, obras como o Monumento às Bandeiras e até espaços de turismo e lazer, como o Parque do Ibirapuera ou a Avenida Paulista. Além de conhecidos cartões-postais, estes bens culturais foram consagrados como exemplares materiais da história oficial, que parece descolada de narrativas e espaços periféricos.
A versão oficial da história, porém, vem sendo revista por pesquisadores e coletivos de memória não institucionais que, juntos, buscam apresentar uma noção de história pública; uma história contada pelo público a partir do uso social do patrimônio, e feita nas “bordas” da produção acadêmica.
“A memória dos lugares históricos é disputada politicamente, e o que fica para as pessoas é essa narrativa da história de São Paulo, que é a narrativa do centro”, afirma Valéria Magalhães, professora e coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral (Gephom) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, na zona leste da capital. Uma das linhas de pesquisa do Gephom tem se dedicado a identificar e estudar os patrimônios históricos e arquitetônicos da periferia da cidade, fora do centro hegemônico e para além da bibliografia europeia. Articulando suas reflexões a partir de uma relação com a comunidade e com coletivos locais, o grupo quer descobrir, valorizar e tornar conhecido esse patrimônio que ainda se encontra à margem do eixo tradicional e distante do imaginário popular.
Na pesquisa de Queila Rodrigues, mestranda no Programa de Mudança Social e Participação Política da EACH e integrante do Gephom, o foco é a zona leste. “Aqui há uma presença marcante de grupos que a gente chama de ‘popular’, mas esse termo oculta suas origens negras e indígenas”, conta ao Jornal da USP. Por meio dos grupos de maracatu, jongo, coco, samba de roda, samba de bumbo, marabaixo e outras manifestações culturais, a pesquisadora busca mapear sua presença no território e compreender os processos de diáspora e migração interna envolvidos. “Mas, ao mesmo tempo, tenho a perspectiva de construir um recorte para olhar com mais atenção os grupos liderados por mulheres negras e periféricas”, diz Queila. Além deste patrimônio imaterial, a pesquisadora quer investigar, ainda, ocupações culturais e espaços culturais comunitários de referência para a região.
De acordo com Valéria, a inserção tardia da USP na zona leste atrasou sua percepção pelas demandas sociais, que já se encontravam em um cenário relativamente organizado. “Estamos situados em um campus periférico, construído a partir das lutas populares da zona leste, e precisamos ter um comprometimento com a memória periférica. Uma memória que foi subalternizada ao longo do tempo pelas disputas de memória. E agora que começamos a estudar decolonialidade e as resistências ao processo colonial, é mais importante ainda dar atenção a esse patrimônio”, diz.
Néstor García Canclini – O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional
A coordenadora do Gephom ressalta a rica e importante parceria da academia com os produtores de conhecimento locais, que levam consigo a perspectiva de quem vive e se identifica com o território. É o caso do Grupo Ururay, coletivo independente interessado na preservação do patrimônio cultural da região leste de São Paulo. O coletivo desenvolveu uma ampla pesquisa sobre um conjunto de bens culturais da zona leste, redescobrindo sua história e renovando as análises já feitas sobre esses patrimônios.
A partir de roteiros turísticos na região, o grupo desenvolveu um documentário, um livro e uma exposição, lançada no Centro Cultural da Penha e exibida, também, no Centro de Preservação Cultural da USP, em 2017. “Para quem está pesquisando, começa a surgir uma percepção diferente, atenta, do território. Mas a população em si ainda tem um distanciamento. Quando propomos um roteiro de visita aos patrimônios de Itaquera, por exemplo, eles perguntam: “Mas tem patrimônio aqui?”, relata Lucas Florêncio, historiador, colaborador do Gephom e um dos responsáveis pelo mapeamento do patrimônio cultural da zona leste junto ao Grupo Ururay.
“Territórios de Ururay”, com projeto gráfico de Andreia Freire – Foto: Reprodução
Muito mais do que o tombamento, Florêncio reforça a importância da relação da população com os bens culturais, “comportando todas as significações dessa relação”. Ele conta que percursos guiados pelo bairro têm levado os próprios moradores a criarem uma conexão entre o patrimônio e a própria trajetória de vida e de familiares. Tanto para a coordenadora do Gephom, quanto para Florêncio, esta dimensão ainda não é bem estabelecida nas políticas de acesso e preservação do espaço público. “É uma exclusão socioespacial que se expressa no Programa Ruas Abertas, por exemplo. Você tem a Avenida Paulista como uma das ruas abertas aos domingos na cidade, mas lá tem dez espaços culturais de grande porte, fora as feiras e apresentações musicais. Nas outras ruas abertas, não há nada disso. E essa desigualdade se reproduz em um ‘êxodo’ de pessoas que não só trabalham no centro, mas procuram lá seu lazer”, afirma o historiador.
Uma das construções mapeadas pelo Grupo Ururay é a Capela de São Miguel Arcanjo, no bairro de São Miguel Paulista. O bairro se expandiu ao redor da capela, que é o templo religioso mais antigo do Estado de São Paulo. Construído em taipa de pilão, este patrimônio histórico datado de 18 de julho de 1622 marca a data oficial de fundação do bairro, ostentando 400 anos de existência. “A taipa de pilão é uma técnica específica deste período colonial e a resistência dessa construção, durante tantos anos, mostra a fortaleza que é”, explica Maria Lúcia Nicácio de Sales, professora e voluntária na capela.
Segundo ela, a igreja foi construída em um local estratégico, devido a sua localização. “Estava no ponto mais alto da região, servindo, então, como um local de onde se defendia a cidade. Não se passava para a região de São Paulo de Pyratynynga sem atravessar o Rio Tietê, que ficava em frente à capela”, descreve. No entanto, há indícios de que já havia uma capela construída na mesma localidade, em data ainda mais antiga: 1560. “Este é um registro que consta das cartas que São José de Anchieta enviou para as autoridades de Portugal”, diz Lúcia.
A voluntária conta que a capela de São Miguel passou por um restauro entre 2006 e 2011, período de descobertas sobre o passado e o processo de produção dos elementos ornamentais da igreja. Além das visíveis esculturas feitas em madeiras de jacarandá e pequenas carrancas entalhadas na porta interna, foram descobertas pinturas parietais, encontradas atrás de um altar lateral da capela. “Um dos únicos exemplares de pintura do século 17, com elementos da cultura indígena”, afirma.
Apagamento histórico
Para Casé Angatu Xukuru Tupinambá, sempre se tentou esconder a presença indígena na cidade de São Paulo, “porque se queria uma cidade europeia e as identidades indígena, negra e cabocla não eram válidas”. Autor do livro Nem tudo era italiano, Angatu é indígena morador do Território Tupinambá em Ilhéus, Bahia, na aldeia Taba Gwarïnï Atã, e docente no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul Bahia e da Universidade Estadual de Santa Cruz. Durante seu doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o docente investigou a formação das identidades urbanas em Guarulhos e São Miguel Paulista. “Será que os dados censitários chegavam a São Miguel, Itaquera? Aos fundões da zona sul, da zona oeste? De que cidade eles estão falando? No final do século 19, quando você vê as plantas da cidade, é o triângulo central. E as periferias não entram”, argumenta.
Angatu está organizando coletivamente reuniões para repensar os 460 anos do Cerco de Piratininga, em 9 de julho de 1562. Com atividades em São Miguel Paulista e no centro de São Paulo, o evento proposto por coletivos e militantes busca revisitar o 9 de julho a partir de uma perspectiva indígena, dando voz aos inauditos habitantes originais. Tradicionalmente, a data comemora a Revolução Constitucionalista – ou Levante de 1932 – movimento armado que exigia uma nova Assembleia Constituinte durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas. Porém, a história guarda outro conflito, em um 9 de julho 400 anos mais distante: o levante de indígenas guarulhos, guaianás e carijós contra a aliança entre tupiniquins, colonizadores portugueses e jesuítas. O movimento tinha como destino a então Vila de São Paulo dos Campos de Piratininga – a primeira denominação do município de São Paulo.
Para Emerson Souza Guarani, doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios, a imagem dos povos indígenas, não somente na cidade de São Paulo, mas em todo o Estado, foi completamente alterada. “A ideia que temos, me parece, é a de que os indígenas estavam sempre de passagem. E sabemos que existiam inúmeros aldeamentos indígenas, que se espalhavam por Mooca, Butantã, Itaquera, São Miguel e região”, ressalta.
Mas, segundo ele, ficaram apenas os nomes e um passado de abandono e apagamento. “É como se a gente tivesse que construir, hoje, uma contra-história para poder provar a presença dos povos indígenas, uma série de nomes, de regiões, rios e de aldeias que acabaram sendo esquecidos pelo movimento histórico. E isso nada mais é do que um etnocídio continuado pela própria ciência; ciência que colocou os bandeirantes na categoria de heróis, como se eles tivessem feito parte de uma espécie de criação das estradas, das rodovias, dos rios. E isso é incômodo”.
O bairro que é uma cidade
Não é exagero afirmar que Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital, sustentou alguns dos grandes feitos de São Paulo. O bairro abriga o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina, a Cohab Cidade Tiradentes, com mais de 40 mil unidades. São cerca de 211 mil habitantes no território que cresceu em torno da Fazenda-Indústria Santa Etelvina, inaugurada em 1895, onde funcionavam uma olaria, uma das primeiras indústrias de farinha de mandioca do Brasil e uma serraria. “Uma das primeiras serras elétricas a chegar à cidade de São Paulo foi através do coronel Rodovalho, com essas indústrias”, conta Márcio Reis, historiador e coautor do livro A história desconhecida de Cidade Tiradentes, em seu canal do Youtube.
Márcio Reis, historiador e coautor do livro A história desconhecida de Cidade Tiradentes – Foto: Arquivo pessoal
Ao Jornal da USP, Reis conta que todas as produções eram mantidas por energia elétrica, gerada por máquinas a vapor, e depois transportadas através de trens que ligavam a fazenda até o bairro de Guaianases, na antiga estação do Lajeado. Da Penha até lá, a importante e contraditória figura de Rodovalho deixou marcas em nomes de ruas e é discutida pelo pesquisador em seus vídeos, bem como em sua palestra como colaborador do Gephom.
O trabalho de recuperação documental de Reis o tornou conhecido como o “historiador da Cidade Tiradentes”, e revela um território protagonista da memória da cidade de São Paulo. “A periferia de São Paulo é esquecida, maltratada. A gente só é lembrado pela violência”, diz. Ele admite que a maioria dos moradores desconhece a história do bairro, que tem um centro de formação cultural, três grandes parques e uma Casa de Cultura Hip Hop instalada na antiga Casa da Fazenda Santa Etelvina, um edifício tombado. “Ninguém conhece e eu fui tentar entender o porquê. Infelizmente é o transporte público”, diz. Para ele, é necessário reduzir as distâncias e resgatar a história desconhecida do bairro.
Reis conta que a cena cultural local é bem reconhecida no rap, no slam e no funk. Procurado pela produtora Kondzilla, o historiador confirmou que Cidade Tiradentes foi a porta de entrada para o funk ostentação na capital. Ele afirma que “se fosse convidar alguém para conhecer o bairro, mostraria o Parque do Rodeio, o Parque da Ciência e o Parque da Consciência Negra”. Este último, visitado recentemente por uma comissão de 50 pesquisadores da Universidade de Sheffield, no Reino Unido. A iniciativa, em parceria com a USP, busca soluções para a restauração de ecossistemas urbanos e deve gerar propostas para a futura ampliação da área, com a implantação do Parque Cabeceiras do Itaquera.
A coordenadora do Gephom reforça que inverter narrativas é resistir. “Entendo que o centro está distante da zona leste – não o contrário – e por isso as pessoas não queiram ir. Mas, elas querem ir para outros lugares passar o dia, por exemplo na praia, Campos do Jordão, Holambra… e às vezes a distância é até maior”, provoca Valéria.
Matéria de Tabita Said
Créditos: Jornal da USP
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