Você costuma usar receitas para cozinhar? Talvez você já tenha usado e descoberto que não basta seguir o que está escrito. Há algum mistério na execução do que vemos nas revistas e jornais, pois nem todas as pessoas interpretam do mesmo modo as indicações.
A compreensão é o que prejudica a execução da tarefa. Os chefs incorporam as receitas ou as criam como um cientista cria seu método de pesquisa ou um artista cria seu estilo.
O que ocorre entre a receita e sua realização é um conflito entre teoria e prática. Decepcionar-se é fácil e perder tempo também quando não conhecemos o método e o significado dos ingredientes. Mas toda frustração, mesmo com um guia para fazer bolo, tem seu ensinamento.
Sobretudo quando se trata de uma receita para ser feliz. Ser feliz seria como realizar a receita sem falhas. Todas as sociedades em todos os tempos apostaram na possibilidade de uma imagem da felicidade com legenda, na qual o que é ser feliz estivesse bem explicadinho. Pingos nos is da felicidade como confeitos em um bolo é tudo o que queríamos da vida. Que a felicidade viesse num pacote e, lá de dentro, não precisássemos nem acionar um botão, nem ligar o fogão.
Ser feliz poderia parecer ou ser fácil. No senso comum, o território das nossas crenças mais imediatas, do que é partilhado por todos em ações e falas, ser feliz é uma promessa sempre revalidada. Guimarães Rosa, o lúcido escritor de Grande Sertão: Veredas, dizia, ao contrário, que “viver é muito perigoso”. Aristóteles, que também defendia a felicidade, foi autor da bela frase: “o ser se diz de diversos modos” que podemos interpretar como “a vida pode ser vivida de diversas maneiras.” A felicidade não tem um único rosto.
Immanuel Kant no século das Luzes dizia que só podemos almejar a felicidade, nos tornarmos dignos dela, mas não podemos possuí-la. Com isso ele colocava a felicidade no lugar dos ideais que só podemos imaginar e supor, esperar que nos orientem, mas jamais realizar. Uma receita para ser feliz seria, desta perspectiva, um absurdo.
Se a pergunta pela felicidade, com a complexa resposta que ela exige, já não serve por seus tons abstratos, podemos ficar com a questão bem mais prática do bem viver. Da vida nada parece mais fácil do que simplesmente vivê-la: contemplar o que há, amar quem vive perto de nós, alegrar-se com as conquistas, aceitar as frustrações inevitáveis, lutar pelo próprio desejo, transformar o que nos desagrada buscando o melhor modo possível de pensar e agir.
O modo mais ético e mais justo de se viver é o que todos, em princípio, queremos. Um desejo básico que nos une e que, ao ser construído, carrega a promessa paradisíaca da felicidade comum, do bem estar geral. Se procurarmos conselhos e fórmulas para o bem viver não será difícil fazer uma lista de tons e cores que podemos imprimir aos nossos gestos e atos. E ainda que o receituário seja impreciso, é válido.
O meio tom entre inteligência e emoção, entre razão e sensibilidade é a mais inexata das promessas e a mais complexa das conquistas que um ser humano pode almejar para si mesmo. Vale também como uma receita, a receita de um manjar desconhecido. Ela só existe porque podemos fazer do melhor modo possível, usando-a como inspiração. Cada um só precisa saber que cada manjar é diferente do outro. Cada um tem que aprender a realizar, com método próprio, sua própria alquimia. Somos seres gregários, sua receita servirá de inspiração a outros.
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