Filosofia

“Relações promíscuas entre religião e política”, uma atualíssima reflexão de John Locke

Não foi a diversidade de opiniões (que não pode ser evitada), mas sim a recusa a tolerar aqueles que têm uma opinião diversa (que deveria ter sido concedida), aquilo que produziu todas as convulsões e guerras que aconteceram no mundo cristão por conta da religião.

As cabeças e os líderes da Igreja, movidos pela avareza e pelo insaciável desejo de domínio, fazendo uso de uma ambição imoderada dos magistrados e das superstições crédulas da multidão ignara, os bajularam e os excitaram contra aqueles que discordavam de si, pregando-lhes, contrariamente às leis do Evangelhos e os preceitos da caridade, que os cismáticos e heréticos fossem espoliados de suas posses e destruídos.

E assim misturaram e confundiram duas coisas que são em si mesmas muito diferentes, a Igreja e a commonwealth. Ora, como é muito difícil que os homens suportem pacientemente serem despojados dos bens que conquistaram com sua honesta indústria, e, contrariamente às leis da equidade, tanto humanas quanto divinas, serem entregues como uma presa à violência e à rapina de outros homens; especialmente quando são absolutamente inocentes; e quando a ocasião pela qual são assim tratados não pertence de modo algum à jurisdição do magistrado, mas totalmente à consciência de cada homem individual pela conduta da qual ele deveria prestar contas somente a Deus; o que mais se poderia esperar senão que esses homens, exaustos dos males sob os quais labutam, acabassem no fim por considerar legítimo resistir com a força, e defender seus direitos naturais (os quais não são confiscáveis em nome da religião) com armas o tanto quanto lhes fosse possível? Que esse foi até então o curso ordinário das coisas é abundantemente evidente na história, e que continuará a ser assim doravante é mais do que aparente na razão.

Não poderia, com efeito, ser diferente enquanto o princípio da perseguição pela religião prevalecer, tal como ocorreu até então, junto aos magistrados e aos povos, e enquanto aqueles que deveriam ser os pregadores da paz e da concórdia continuarem com toda a sua arte e poder a excitar os homens às armas e a soarem o trompete da guerra. Mas que os magistrados suportem estes incendiários e perturbadores da paz pública é algo que deveria nos espantar se acaso não tivessem sido convidados por eles a participar dos espólios, considerando assim conveniente se valer de sua cobiça e orgulho como meios para aumentar seu próprio poder.

Pois quem não vê que esses homens bondosos são, com efeito, mais ministros do governo do que ministros do Evangelho e que, bajulando sua ambição e favorecendo o domínio de príncipes e homens em autoridade, eles buscam com todo o seu poder promover aquela tirania na commonwealth que de outra forma eles não seriam capazes de estabelecer na Igreja? Este é o infeliz acordo que vemos entre a Igreja e o Estado. Ao passo que se cada um deles se contivesse a si mesmo em seus próprios limites – um ocupando-se do bem-estar mundano da commonwealth, o outro da salvação das almas – é impossível que qualquer discórdia viesse a ocorrer entre os dois.

Sed pudet haec opprobria etc. [Mas é vergonhoso que tais reprovações etc.] Deus Todo Poderoso permita, eu lhe suplico, que o evangelho da paz seja largamente pregado, e que os magistrados civis, cada vez mais preocupados em conformar suas próprias consciências à lei de Deus e cada vez menos prontos a obrigar as consciências dos outros homens com leis humanas, possam, como pais de seu País, dirigir todos os seus conselhos e esforços a promover universalmente o bem-estar civil de todos os seus filhos, com a única exceção daqueles que são arrogantes, ingovernáveis, e injuriosos para com os seus irmãos; e que todos os homens eclesiásticos, que se jactam de serem sucessores dos Apóstolos, caminhando pacífica e modestamente nos passos dos Apóstolos, sem se imiscuir nas Questões de Estado, se devotem completamente a promover a salvação das almas.

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