Do site O Martelo de Nietzsche
José Saramago foi um dos maiores intelectuais que nós tivemos nos últimos tempos. Era também um dos maiores críticos da sociedade. Em seu livros Ensaio sobre a Cegueira, lançado em 1995, ele nos deu uma obra prima.
O livro não se trata da cegueira física como nós conhecemos, Saramago usava suas personagens para fazer uma crítica ácida a sociedade, principalmente no que diz respeito à cegueira moral.
Ele deu o nome de “cegueira branca’, no decorrer do livro ele discorre sobre assuntos polêmicos e delicados, já que se trata da “patologia”, como uma das piores doenças humanas.
O termo “cegueira branca” é usado pelo autor para representar o egoísmo, a imparcialidade, o medo, a covardia, a raiva e outros sentimentos que cegam o ser humano e o levam à perdição. As personagens não possuem nomes, características físicas nem comportamentais. Saramago tem uma linguagem muito singular, se você nunca leu nenhum livro dele poderá ter alguma dificuldade no início, pois ele usa poucas virgulas, pontos e parágrafos.
A história começa com a primeira personagem do livro, que ficou cega após um acidente de automóvel. Saramago dá o primeiro soco na cara em todos nós leitores apáticos :
“de repente a realidade tornou-se indiferenciada à sua volta”.
A situação fica bem pior. Com altas doses de sarcasmo e explícita indignação diante do comportamento passivo do ser humano, Saramago lança fortes comentários que levam o leitor a refletir sobre as próprias ações:
“O medo cega (…) são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”(…) “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
Eles não querem enxergar (grifo nosso)
Saramago brinca de maneira proposital com maestria com as palavras “ver” e “olhar”. O “olhar” é visto como o ato de enxergar o que está explícito, isto é, a luta pela comida, a violência imposta pelo mais forte, a ausência de pudor justificada pela nulidade do sentido visual, a tirania do governo.
O ato de “ver” e “reparar” refere-se a se posicionar diante dos fatos e fazer algo para mudar o quadro triste e degradante da sociedade. “Se não formos capazes de viver como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais.”
A cegueira social é entendida como alienação do homem em relação a ele mesmo. Quando a cegueira branca se torna uma epidemia, os problemas da sociedade ficam expostos e aumentam notavelmente, já que ninguém “enxerga” para mudar. Em outras palavras: as regras da civilização são quebradas e o instinto de sobrevivência toma conta do homem, constatando o velho ditado, “quem pode mais chora menos”.
Em relação a cegueira moral na sociedade, o que mudou de 1995 para cá?
Nós vivemos uma época de claro retrocesso, e cegueira total em relação a temas absurdos, como violência verbal e física, assassinatos, torturas, extremismo político, falsidade ideológica, descaso, sobretudo amor ao ódio e ódio explícito a tudo que é diferente. Aceita-se, passivamente, a violência psicológica e abusiva, dentro de relacionamentos amorosos, profissionais e familiares, só para “não criarem atritos”. Aceita-se a violência social, desde que ela não nos atinja. Finge-se não ver os abusos que as crianças sofrem, para que “famílias” não sejam destruídas”. Aceita-se um governo autoritário, aceita-se um extremista, aceita-se tudo, exceto a necessidade de mudança real. Será que, nós também, não fomos infectados pela cegueira moral e fingimos não perceber?
Saramago nos convida a uma autocrítica e a uma reflexão sobre até que ponto estamos cegos ou somos maldosos:
“-É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.”
Pergunte a si mesmo: até que ponto aguentaremos a violência, os roubos, a tirania como situações normais? Até quando seremos passivos diante da fome alheia? Até quando nossos braços ficarão cruzados sabendo que nossas crianças estão sendo abusadas e maltratadas? Até quando aguentaremos relacionamentos abusivos dentro da própria casa? “Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira”.
“Por que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que vendo, não vêem”
O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam, como cumpridores cidadãos que devem de ser. as responsabilidades que lhes competem, pensando também que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações, um acto de solidariedade para com o resto da comunidade nacional.” (p. 50)
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