por Vítor Belanciano/Público
Há 20 ou 30 anos, não faltava quem assumisse que, em 2017, nos alimentaríamos de pílulas coloridas, que iríamos de férias de Verão até a Lua, que o crescimento econômico seria ilimitado, os recursos infinitos e que as desigualdades sociais se atenuariam.
Existia crença no futuro. Os traumas do fascismo e o desacreditar do comunismo, depois da queda do muro de Berlim, faziam acreditar que os modelos políticos e socioeconômicos vigentes poderiam ser melhorados e que a tecnologia nos salvaguardaria.
A partir da década de 1990, no campo cultural, que tantas vezes é reflexo e profecia do mundo, começou a perceber-se que entráramos em plena era dos “re” (reformulações, remisturas, reciclagens, revivalismos, regressos, recuperações, remakes, reedições, retrospectivas), vislumbrando-se uma certa paralisia, como se a única opção fosse voltar melancolicamente ao passado, mas ainda assim a fé no progresso parecia imparável.
Na última década, esse alento se foi. Filhos começaram a duvidar de que a sua vida seria melhor do que a dos pais. O sentimento de que as elites políticas eram incapazes de gerar mudanças foi crescendo e a desconfiança em relação ao sistema político acentuou-se. O desemprego, a precariedade e as desigualdades cresceram. Até a tecnologia começou a ser olhada com suspeita com o receio da substituição do trabalho humano por máquinas.
A descrença num futuro melhor intensificou-se com o terrorismo, a crise financeira e a estagnação econômica, impondo-se uma atmosfera de incerteza e impotência, como se preservar o mínimo (emprego, educação, saúde) fosse o máximo possível. As ferramentas que, no passado, se revelaram eficazes para lidar com os desafios da vida individual e coletiva, foram desacreditadas.
Hoje, parece que projetamos os medos para o futuro e falamos com saudade do passado – não só o recente, antes do irromper da crise financeira, mas principalmente do mais longínquo. Em alturas de desordem, quando não parece existir confiança num rumo, podem traçar-se utopias, esse impulso para transformar o presente através do vislumbre de um outro futuro. Mas, a desilusão e o temor pelo que poderá vir aí podem levar-nos a tentar regressar a um passado seletivo, logo, idealizado, ou a algo que foi abandonado lá atrás e que se julga poder agora reparar.
Em parte é isto que é refletido em Retrotopia, obra póstuma de Zygmunt Bauman, que faleceu no dia 09 de janeiro de 2017, há exatos 365 dias.
É como se Bauman nos dissesse que uma das consequências do fim do pensamento utópico, com todos os seus riscos, mas apesar de tudo baseado numa vontade transformadora e na confiança, tivesse dado lugar agora à retrotopia, assente na desconfiança e num regresso a um passado mitificado, que nunca existiu realmente, do qual se selecionam apenas algumas partes, numa replicação mais imaginária do que real.
Deslocamos as esperanças de uma sociedade melhor num futuro que ainda o não foi para um passado que não foi da forma como tentamos fazer crer, num regresso à caverna, à tribo, ao que julgamos conhecer.
O objetivo já não é conseguir uma sociedade melhor, porque consegui-lo parece uma esperança vazia, mas apenas melhorar a posição individual dentro da mesma. Vive-se numa urgência sem fim e há quem desista de pensar ou construir mundo, satisfeitos que o mundo lhes aconteça. Mas, se a grande maioria deixou de pensar o futuro, não o fez por opção, mas sim porque não possuem um horizonte. Estão vivos hoje, têm emprego e comida para os filhos, mas não sabem se o terão amanhã. A incerteza não lhes permite ver o futuro para além do imediato.
Vive-se numa espécie de eterno presente, com mais perguntas do que respostas, mais problemas do que soluções. Mas regressar ilusoriamente ao passado, seja ele qual for, não parece solução para quebrar o enguiço. É necessário encontrar outras formas de viver o tempo que temos para viver, valorizando a memória, mas sem ficar preso à história, não temendo paradoxos ou o que não se conhece por inteiro, porque é nesse processo que o desejável pode ser alcançado.
Numa das últimas entrevistas, perguntaram a Bauman se este era otimista em relação ao futuro. Respondeu que era pessimista no imediato e otimista no longo prazo, refletindo que a humanidade já havia passado por encruzilhadas que tinham sido superadas. É isso. Mas, até que a confiança no futuro seja uma reposta, é inegável que muitas vidas continuarão com um ponto de interrogação.
Via Público com alterações do Fronteira do Pensamento
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Retrotopia é o último livro de Bauman, em que o grande pensador da modernidade líquida, falecido em janeiro de 2017, disseca o fenômeno atual de busca por um mundo melhor não mais no futuro a ser construído, mas em ideias e ideais do passado, como nacionalismos exacerbados e fechamento de fronteiras.
Assim, a nostalgia se transformou em um mecanismo de defesa nos últimos tempos. Grandes planos do passado – abandonados, mas não mortos – estão sendo ressuscitados e reabilitados como possíveis caminhos para um mundo melhor.